• Carregando...
Mazzaropi no Cine Rio Bonito
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Há pouco mais de 20 anos, a então estudante Luciana Cortez flanava pela Rua das Flores quando se deparou com um rapaz, digamos, interessante. A amiga que a acompanhava também achou, e foi mais rápida no gatilho. Aproximou-se com uma desculpa esfarrapada, garimpou uma informação qualquer e, sem deixar cair a peteca, pediu o telefone do moço. Ele não teve defesa. Anotou o número num papel, mas não entregou a quem lhe pediu. Dobrou o bilhete e o fechou na palma da mão de Luciana. O dia e ano da cantada que definiu a vida dos dois é 29 de março de 1999, aniversário da cidade. Em poucos meses estariam casados – e atolados numa lida que pouco tinha a ver com o amor romântico. Foi uma lenha passar da conversa mole na XV até chegar à ONG Lucianas & Marias, fundada pelo casal há pouco mais de um ano, hoje uma espécie de razão de viver.

O tempo de namoro até que lhes reservou alguns deleites antes de caírem no batente. Iam ao cinema, por exemplo. “Quatro vezes”, contabiliza Luciana, que confessa lembrar apenas do primeiro filme que viram juntos, numa sala do Shopping Itália: Shakespeare apaixonado, de John Madden, com Gwyneth Paltrow e Joseph Fiennes. “Escolhi por causa do nome”, admite Fernando.

Aos poucos, o cinema foi minguando na rotina do casal – que passou a morar na periferia de São José dos Pinhais. “O lugar era horrível”, dispara dona Lúcia Donato, 73 anos, mãe de Fernando, sogra de Luciana e incentivadora de toda e qualquer ideia pelas quais os dois encasquetem, das de subsistência às de ordem humanitária. Era Lúcia, por exemplo, quem ajudava a torrar os amendoins que a nora vendia no comércio, mas também como ambulante, à noite, em pontos de ônibus no Centro de Curitiba. Alta, desinibida, alegre, “pele negra, quente e meiga”, como diz a canção Lágrima do Sul, na voz de Milton Nascimento, Luciana é o tipo que não passa despercebida nem em temporal. “Vendia bem”, admite, mas se chateava com o que tinha de ouvir. A gota d’água veio quando uma potencial cliente disse “vou comprar só para te ajudar”. Em resposta, soltou-lhe os cachorros. Ei-la.

O crochê – habilidade aprendida de missionários evangélicos norte-americanos – viria a se tornar a pedra de toque de uma “pequena revolução”

Seguiu com outros trabalhos – caixa das Lojas Americanas e balconista da Iris Color entre eles – até lhe sentir faltar o ar, rarear a alegria, o peito apertar. A depressão e a síndrome do pânico se tornaram suas inimigas íntimas. Até hoje Luciana não assiste ao noticiário, ciente do efeito raio que o parta que a desgraça dos outros exerce sobre ela. Essa moça não tem nervos de aço, mas a vida não lhe dá sossego.

Durante um de seus períodos de instabilidade, mudou-se para o lado dos seus pais, no Rio Bonito – um condomínio popular gigante, de mais de 40 mil pessoas, no bairro Campo de Santana, periferia de Curitiba. Logo ao chegar, dois episódios fizeram dela mais do que uma forasteira à base de calmantes. Certa ocasião, encontrou nas caixas de sua mudança um tapete de crochê que tinha deixado pela metade. Carregou-o para o portão e se pôs a terminá-lo. Uma moça passou na calçada e soltou um “que bonito”, seguido de um “me ensina?”. Era uma mulher com mais fragilidades emocionais do que Luciana, mas que, sem querer, furou-lhe a bolha. Tempos depois, botou uma plaquinha no muro da casa: “Aqui, aula de crochê de graça”. Todas as quintas-feiras recebia alunas. Em pouco tempo, a habilidade – aprendida de missionários evangélicos norte-americanos, ainda menina de 8 anos – viria a se tornar a pedra de toque de uma “pequena revolução”, como gosta de repetir.

A saga do Rio Bonito não se encerra aí. Numa das muitas noites de insônia, Luciana Cortez se deu conta das filas que se formavam, lá pelas quatro da manhã, na porta da unidade de saúde da prefeitura, do outro lado da rua. Um rebanho e tanto para quem contava carneirinhos para conseguir dormir. Bem a seu estilo, vestiu o peignoir e foi perguntar por que aquelas pessoas idosas pulavam da cama antes do galo esganiçar. Soube: faltavam especialistas na unidade. E para quem mora naquelas lonjuras, pegar um ônibus para ir a outros postinhos era como fazer triatlo sem tomar café da manhã. Madrugar era um imperativo.

O resto do enredo é conhecido. Luciana incentivou o povo da unidade a escrever cartas ao prefeito, reclamando. Ela mesma serviu de escrevinhadora para inúmeros deles, qual a personagem Dora, de Fernanda Montenegro, no filme Central do Brasil. A diferença é que não trapaceou ninguém. Usou de seus conhecimentos jurídicos, registrou cada missiva junto ao município e viu o poder público descobrir que o Rio Bonito não era só um loteamento dormitório, mas endereço de senhores e senhoras isolados em casa, sem o consolo de um bom atendimento médico.

Desde o episódio das cartas, Luciana não arredou mais o pé da unidade, da qual hoje faz parte da mobília. Entrou para o conselho de saúde local e implantou ali uma novidade – as aulas de crochê, uma vez por semana, para cerca de 40 interessados, entre mulheres e homens adultos e adolescentes. Quatro professoras se dividem na tarefa, em meio a um time de voluntários que passa por Meire, Rose, Luciana Alves, Natália, Sônia, Cris, Ana, Roseli... Os efeitos na clientela são flagrantes: redução da ansiedade, da melancolia e do isolamento. “Desenvolvemos uma metodologia”, diz a idealizadora do projeto, ao contar que nenhum interessado sai das aulas sem um produto acabado. Uma das regras das oficinas é bem pragmática. Tal como lhe aconteceu um dia, ao ver que alguém sabe um ponto diferente, faz um convite: “Me ensina?” Simples assim. A perguntinha opera milagres.

O próprio Fernando botou pra correr seu Petruccio interior. Tornou-se uma espécie de crocheteiro-mor da organização não governamental Lucianas & Marias. É ele quem faz o design dos bonecos de personalidades da cidade; e quem inventa mascotes para instituições interessadas em parceria. Está em gestação, no momento, o Erastinho – que será oferecido para angariar fundos para o Hospital Erasto Gaertner. A empreitada mais divertida é bolar um Lula e um Bolsonaro em fios, de modo a arrancar um pouco de amor em tempos de cólera. Vi os protótipos. Torço pelo êxito do Fernando.

Se a turminha do crochê tinha saudade do cinema, o negócio era trazer o cinema até eles

“Sou eu que tenho as ideias”, brinca, em conversa ao pé do ouvido, para provocar a mulher. Os dois dizem se parecer à protagonista da série canadense Anne with an E: gostam de inventar. O casamento deles é coisa boa de ver. No dia em que ele colocou o telefone na mão dela, e não na de sua colega, encontrou o que procurava – uma parceira a mil rotações por minuto. “Eu sou cara de pau”, resume ela. “Eu sou leitor de O poder do pensamento positivo (de Norman Vincent Peale)”, avisa Fernando. Fechou.

***

“Empatia”, soletra Fernando. “O que falta é empatia”, repete, ao lado do filho Arthur, de 10 anos (o mais velho da prole, Juan, completou 18), ao tentar traduzir numa palavra o nosso cinema de horrores de cada dia. Na casa dos Cortez, eternamente em reforma, a conversa resvala para a política, economia, sociedade e para a comunidade do Rio Bonito. Depois deságua num episódio delicioso ocorrido também na Unidade de Saúde: o casal se deu conta de que muitos frequentadores das aulas de crochê ou há muito tempo não pisavam num cinema, ou não sabiam do que se trata.

Dona Lúcia, a mãe de Fernando, inclusive, é uma prova do fascínio que a sala escura provoca nos mais velhos. Ela assobia lindamente um tema de Ennio Morricone que ouvia na sala de cinema do Norte do Paraná, na sua infância. “As cortinas iam se abrindo. Era lindo”, comenta com os olhos em transe. Por coincidência, o pai de Luciana, que mora ao lado, confidenciou nunca ter ido a uma sessão. E que tinha vergonha de fazê-lo. Seu argumento é de que todo mundo ia notar que aquela era sua primeira vez, à beira dos 70 anos.

Rolou empatia. Se a turminha do crochê tinha saudade do cinema, o negócio era trazer o cinema até eles. Levá-los a um multiplex de shopping, sem chance. A ONG Lucianas & Marias tem sede, no vizinho Tatuquara, mas por enquanto não goza de verba para projetos. Resta o improviso. Assim nasceu o “Cinema no Posto”. A dupla e os voluntários vedaram as janelas de uma sala da unidade, arrumaram um projetor que parece importando do antigo Leste Europeu, estouraram pipocas e projetaram As aventuras de Pedro Malasartes (1960), de Mazzaropi, o artista mais citado pelos participantes em uma enquete informal. A turma gargalhou, como se tivesse 12 anos e ainda subisse no pé de goiaba. “E num filme preto e branco”, brinca Fernando. Na última semana, a unidade teve sua quinta sessão de cinema.

Luciana não esconde que bem gostaria de um bate papo depois da projeção, mas por enquanto o que rola é clima de cinema mesmo. O pessoal levanta, repete as piadas mais engraçadas e segue seu rumo, feliz da vida. Sem problemas. Fernando até criou um slogan para a experiência: “Cinema é arte, arte é saúde”, enuncia o Shakespeare apaixonado do Rio Bonito. Se crochê é um santo remédio, Mazzaropi, nem se diga.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]