José Carlos Fernandes

Na Vila Torres tem batucada

José Carlos Fernandes
23/02/2019 12:00
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Foto: Arquivo Pretinhosidade / Arte: Felipe Lima

O nome do bloco carnavalesco “Afro Pretinhosidade” ainda causa estranheza. Tem quem gagueje. Quem pense se tratar de um trava-língua. Quem diga “pretinhosura”, ou algo assim. Mas não há quem resista à história dessa que figura entre as novíssimas agremiações curitibanas – uma ova para os que desdenham de Momo nas terras frias. O grupo soma dois anos de batucada, agrega mais de 30 participantes de tudo que é idade e uma enxurrada de planos para se manter na pista por uma eternidade e mais um dia. Tudo indica que os deuses aplaudem a iniciativa.
Essa história começou com “olás” e “ois” ditos em série e sem vergonha por um sujeito bem disposto chamado Elton Erê. Militante do movimento negro, ele adotou uma estratégia sensível para se comunicar com sua gente, em especial a parcela que parecia vendo a banda passar. Começou a cumprimentar os que encontrava aqui e ali, ao atravessar a rua. Não raro o aceno virava conversa, que se convertia num convite para almoço de domingo. “Cardápio?” Cada um leva seu prato. “Local?” A casa que estiver aberta. “Motivo?” Falar da vida, fazer amigos e gargalhar, se possível. “Filosofia?” Estreitamento dos laços dos irmãos pretos, na linha “eu sou, nós somos”.
Simples assim, as rodas do Erê, ou que nome tenham, chegaram ao pico de 130 convivas, 15 edições, com início pela manhã e encerramento no fim da noite. Falou-se de tudo um pouco, da condição racial, inclusive. E de que passava da hora de fazer música durante os encontros. Um ziriguidum, quem sabe. Nascia o Pretinhosidade – cordão surgido para distrair a turma depois do almoço, mas que não se aguentou em si. Soma 65 membros, 95% negros, segundo o olhômetro. Pulou do quintal para fora, ganhou mais adeptos, parceiros e agregou gente doidinha para fazer uma abolição estética – o Diorlei dos Santos, por exemplo. Virou freguês. Ele o bloco se confundem.
Diorlei, o “Chocolate”, tem 28 anos, é arte-educador, oficineiro (ensina a fazer e a amarrar turbantes como poucos – sendo ele mesmo o modelo) e percussionista bem porreta. Quem o vê fazer misérias à frente dos tambores não imagina, mas o jovem foi introduzido no mundo afro pela dança, na adolescência, por intermédio da Associação Cultural de Negritude e Ação Popular (Acnap). Essa parceria o salvou de tudo que é praga. Menino em situação de rua, Diorlei passou parte da adolescência na obra social Menino de Quatro Pinheiros, em Mandirituba, Região Metropolitana de Curitiba. Era um piá desembestado, como ele não economiza ao contar, mas que achou seu prumo quando se viu num palco. Ali, ao descobrir que tinha remelexo, entendeu o risco do bordado: 1. percebeu que era negro; 2. que os negros continuavam na briga; 3. que tinha nascido para tratar desse assunto – preguiça não podia fazer parte dos seus planos. Aos poucos o estilo Alexandre Pires foi cedendo ao visual Carlinhos Brown – um capítulo dessa trajetória, aliás.
Nos últimos anos, Diorlei desenvolveu uma banda mirim em que os instrumentos são feitos com latas de tinta, cabos de vassoura e o que mais estiver sobrando. Aprendeu a técnica com o percussionista Nelson Sebastião, a quem não deixa de dar créditos. Seus músicos são os guris e gurias da ONG Passos da Criança, contraturno que funciona na Vila das Torres, a mais antiga zona empobrecida da capital paranaense. A organização tem à frente outro ex-menino da Chácara Quatro Pinheiros, o assistente social Adílson Pereira. No passado, os dois dividiram a mesma dureza do abandono. Agora dividem um sobrado sem luxos em que 40 alunos de escolas da região das Torres passam algumas horas do dia – tirando som da caixa, inclusive.
Tive a oportunidade de ver Diorlei reger sua afro-orquestra de baixinhos. Faz o tipo durão. Pede disciplina, empenho, mesmo para os piás que parecem menores que o “bumbo” que carregam. Penso que ninguém se importa com a cara de brabo do líder. A piazada tem adoração pelo sujeito exuberante dos turbantes multicoloridos, dono de uma voz rasgada, porte de academia e hábitos despachados. Se pode chamar de longe, gritando, o faz sem cerimônias. Ano passado, seus seguidores tiveram oportunidade de demonstrar o tamanho deste afeto.
Em agosto, Diorlei soube que o baiano Carlinhos Brown vinha a Curitiba para um show d’Os Tribalistas, ao lado de Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Botou na cabeça que o músico tinha porque tinha de saber da existência da turminha de percussionistas da Vila das Torres. Mexeu com meio mundo até descobrir a hora em que Brown chegava e onde ficaria hospedado. Não é difícil imaginar que o dia e a hora estavam sujeitos aos humores de Carlinhos, mas o local estava corretíssimo: O Hotel Bourbon da Rua Cândido Lopes, na frente da Biblioteca Pública do Paraná.
Pois os alunos da ONG Passos da Criança fizeram uma vigília de quase seis horas nas cercanias do Bourbon – e nada do Brown. Diorlei, pouco dado a arredar o pé, pensou desistir. Até que lhe baixaram os deuses do candomblé. Mandou que todos levantassem, começando a festa mesmo sem o convidado à vista. Não demorou muito e um carro preto se aproximou, bem na hora em que a bateria ameaçava explodir os tímpanos dos moradores do Centro da cidade. Brown nem fez o check-in. Atravessou a rua, todo abraços, e se esbaldou em 40 minutos do show improvisado, num meio-dia gelado em CWB. Na despedida, ouviu no meio da malta uma daquelas vozes esganiçadas que os meninos têm quando andam às turras com o pomo-de-adão: “Seu Brown, arruma uma bolsa de estudos para nosso mestre”.
Pois arrumou. Daqui a um mês, Diorlei desembarca em Salvador da Bahia como aluno da Pracatum, escola de música e obra social de Carlinhos Brown. Conseguiu vaga gratuita, mas de resto vai ter de se virar. Não faz a mínima ideia de como pagar o resto das contas. “Se não pintar trabalho, vendo água no sinaleiro”, avisa, do alto da experiência de quem já chupou abelha para comer mel, inclusive em Salvador. O pessoal da Pretinhosidade promete uma despedida solene, mas antes vai ter de dar conta do carnaval. Quem for à vila neste domingo verá.
Uma prévia da ferocidade máxima do bloco foi dado há 20 dias, quando mais de mil pessoas fizeram o pré-carnaval pela Rua Manoel Martins de Abreu – extraoficialmente o Sambódromo da Vila das Torres. Foi um termômetro: 15% da comunidade aderiu ao evento. Na folia deste fim de semana, o grupo sai de um lugar estratégico – uma ponte de madeira perto do campinho, ao lado da Unidade de Saúde –, epicentro da divisão dos dois lados da comunidade. Não raro as relações ficam tensas nas fronteiras, mas não dessa vez, pacificada pelos tambores, acredita-se. O trajeto encerra noutra ponte, a sobre o Rio Belém, na Rua Balthazar Carrasco dos Reis, na frente da Mercearia do Cordeiro.
José Cordeiro, o comerciante, é entusiasta do projeto e promoter voluntário. Os ensaios do Pretinhosidade são feitos na frente do seu estabelecimento. Uma sala ao lado da mercearia, onde Zé um dia fez funcionar uma ONG, a Vila Nova, serve de depósito para os instrumentos, espaço de reunião e, nas devidas proporções, barracão para que a turma do bloco se aprume.
Os músicos nunca estão sozinhos. Além dos vizinhos, curiosos e da moçada interessada, blocos como o Garibaldis & Sacis e a bateria da Leões da Mocidade já deram as caras, em apoio ao grupo recém-nascido. Um bloco da comunidade, o De Repente, estava no pause, mas sacudiu a poeira e volta à ativa, inflamado pela novidade. O Afro Pretinhosidade deu de tirar a vila do lugar, com tudo o que isso significa. Eis a graça.