José Carlos Fernandes

Nossas noites tinham jazz

José Carlos Fernandes
24/12/2017 20:00
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Foto: Lina Faria / Arte: Felipe Lima

Sabe aquela conversa que a gente sempre ouviu, mas suspeitava ser balela? Pois é verdade. Por pelo menos 25 anos, entre 1950 e 1975, Curitiba foi uma espécie de capital brasileira do jazz. Os músicos eram tão bem pagos pelos empresários do ramo que famosos enfrentavam a neblina do Aeroporto Afonso Pena ou a pavimentação sofrível da BR-116 para se apresentar nos inferninhos das praças Osório e Carlos Gomes. Cruzar com Agostinho dos Santos na Rua XV – nos tempos pré-Calçadão – não tinha nenhum mistério. E Tônia Carrero, a mais bela, figurinha da revista Cruzeiro e todas as outras, não economizava adjetivos à noite de CWB.
Yes, nós tínhamos a cantora colombiana Emma Taylor, com tomara-que-caia, à meia-luz na boate Manhattan, conhecida de guerra de, babem, Errol Flynn. Uma vedete argentina chamada Laksmi – devorada com os olhos ao descer de táxi na porta da “Marrocos”, na Zacharias. Elegante como uma dama do Country, subia com ares de esfinge os míticos 31 degraus da casa mais famosa do nosso circuito profano musical. Ali ganhava a vida. Estima-se que foi homenageada por nove entre dez guris da paróquia.
Mais? A cidade equivalia a um império. Tinha um rei negro, Lápis; um rei da noite, Paulo Wendt; um doido varrido que sacudiu a poeira do provincianismo – Joffre Cabral. Tinha também o quinteto de Breno Sauer, com suingue o bastante para render qualquer sumidade do showbiz internacional. De quebra, Curitiba disputava com Rio de Janeiro e São Paulo o posto de um dos berços da bossa nova, feito até hoje não reconhecido.
Quem conta o milagre – para usar uma expressão da época – é uma testemunha ocular da história, o jornalista veterano Adherbal Fortes de Sá Jr.. Seu currículo não pede delongas: inclui passagens pelos jornais Diário do Paraná e Última Hora. Na década de 1950, Adherbal saía altas horas das redações e começava seu segundo turno nas boates onde se bebia uísque “quase honesto”, como frisa, e se ouvia uma música tão boa que, não causa espanto, pareça aos olhos de hoje uma fake news da época do laquê e da aquavelva.
Ainda que jovem, àquela altura Adherbal estava longe de ser um novato em matéria de jazz. Filho de pai militar, cresceu às voltas com a banda da polícia, sua primeira escola. Virou uma doença incurável, administrada com sopa húngara, pós-ressaca. Tornou-se capaz de dizer que bons discos importados davam mole ao lado das vitrolas, nos chalés suíços habitados por gente graúda – em geral sócios do Clube Curitibano. Os jazzófilos eram, não por acaso, assíduos frequentadores do subsolo da agremiação, na soberba sede da “Barão”, conhecido como Caverna Curitibana, território onde não havia inocentes. Fortes cultivava a todos, é claro, com as melhores intenções: ampliar seu repertório, para o qual só tinha um concorrente na vizinhança, o também jornalista Aramis Millarch.
Por ironia, a casa em que os Fortes de Sá viviam, na Cruz Machado, virou a boate La Ronda, proibida até para maiores, hoje reduzida a cinzas. “Só não conte a ninguém”, brinca, de posse do humor irresistível, cujo repertório pode manter a audiência refém durante horas, sem extrair bocejos ou pernas inquietas. A quantidade de episódios presenciados pelo jornalista é tamanha que não teve sossego. Perdeu a conta de quantas vezes foi intimado a escrever um livro sobre os anos dourados de CWB. Obedeceu. Nos últimos 15 anos vasculhou arquivos de jornais, colheu fungos em álbuns de fotografia, irritou-se, entrevistou expoentes – o pianista Gebran Sabbag, por exemplo, deu-lhe informações até às vésperas de morrer. Com os colegas Miriam Karam, Gladimir Nascimento e Rosirene Gemael (in memoriam) publicou uma primeira parte da garimpagem, anos atrás. Quem leu pediu mais. Acatou, dando forma a Curitiba no tempo da jazz band, recém-lançado pela Artes & Textos.
O livro é uma versão local de Chega de Saudade e A noite do meu bem, ambos de Ruy Castro. Impressiona o mapa das boates do período – nada menos do que 35 estabelecimentos surgidos em duas décadas. Os nomes mexiam com a imaginação dos friorentos curitibanos, atiçavam o ciúme das esposas e geravam acumulados de intenções nas novenas do Perpétuo Socorro, para ver se alguém se salvava. Além da boate Marrocos – citada na obra de Dalton Trevisan, ele próprio um personagem do livro –, havia points sob medida para quem queria se perder: Je Revien, Moustache, La Ronde e La vie en rose (onde João Gilberto deu uma palhinha), para citar alguns.
Como bem cabe a qualquer exercício de sociologia da cultura, resta saber por que diabos um estado rural e complexado – que àquela altura completava 100 anos de peleja, cansado de esganiçar que não era mais comarca chulé de São Paulo – foi se fresquear justo com o jazz. Não combinava, a rigor, nem com a erudição do hausmusik dos alemães luteranos, nem com as origens tropeiras, tampouco com os tiques de nobreza europeia cultivada pelos barões do mate. Em tese, bastaria recorrer ao historiador britânico Eric Hobsbawm, que explicou com mesuras e paixão a relação uterina entre o século 20 e a música americana. Curitiba fazia parte do mundo, ainda que debaixo de controvérsias. Era chegada num recital de Mozart na PRB2, mas desceu do salto e se rendeu ao jazz. Simples assim.
Adherbal defende sua própria teoria. E ela grosso modo atende pelo nome de “grana”, sem a qual não nascem os mecenas, levando a reboque a cultura elaborada ou alta cultura. Essa conta é mole de fazer. Naqueles idos, o Brasil produzia mais da metade do café do planeta e metade do café brasileiro vinha do Paraná. Tal feito espetacular se deu à custa de um dos maiores crimes ambientais da humanidade, como costuma frisar o ativista Cláudio Oliver, da Casa da Videira. Derrubaram a mata do Paraná em tempo recorde e isso deu muito dinheiro. Dizem que o lucro do ouro verde corria mesmo era no Porto de Santos, mas a capital gerenciava repasses para o interior. Um beija-mão danado, que fazia da cidade um aglomerado de homens de terno e gravata, solteiros por uns dias, em busca de boa comida, música, companhias femininas e créditos suspeitos. Em 1975, com a Geada Negra, a farra acabou, e com ele a luminosa era do jazz nos pinheirais.
Numa das tiradas mais divertidas do livro, Fortes – que circulou na mocidade pelos Campos Gerais – explora o conceito de jazz band, no entender do caboclo. Pois se aplicava a quase tudo que emitisse sons de alguma natureza, arrisca que até a um coro de galos ao amanhecer. O bom sujeito do rico interior paranaense chamava de jazz band um regional que cantasse toadas sertanejas, guarânias, mesmo que o crooner fosse do tipo que ajudava a empurrar a jardineira afundada na lama – num grifo do próprio autor. “Jazz band era qualquer coisa que tocasse música em baile”, resume. Fazia sentido. No pós-guerra o povo queria repetir a magia do cinema na vida real, e para isso precisava ter uma orquestra ao fundo, dando o tom da emoção. A diferença entre Curitiba e Jaguariaíva é que a primeira podia pagar bem por esse luxo. Os músicos daqui, reza a lenda, andavam na estica. Houve até quem enriquecesse. Mas não digam que foi o Giuseppe Bertollo, o maestro Beppi. Mereceu – ouvia no rádio a Voz da América, criava acordes com s standards que faziam sucesso lá fora, vencia na teimosia o nosso isolamento.
As teses culturalistas e econômicas de Adherbal são ditadas sem nenhuma afetação. Nem poderia ser diferente. Ele vem de uma geração que aprendeu com a imprensa dos EUA a ser direto e essencial, sem perder a mordacidade jamais. Paralelo, suas fofocas sentimentais devem fazer o colunista Dino Almeida se revirar no túmulo. De narrativa em narrativa, apresenta episódios saborosos na mesma medida que planta pensamentos. 1) Alerta para a falta ou penúria de registros – onde, Jesus, encontrar fotos do Lápis no festival da Excelsior, aplaudido por 30 mil pessoas? “Nossa memória é ruim, mas nossas imagens são muito piores.” 2) Destaca que nosso jazz deve até as calças para as Forças Armadas e similares. O capítulo dedicado ao mago Raul de Souza, que era da Aeronáutica e ciscava por aqui naqueles idos, é uma prova documental de que a capital estava no mapa de fato. 3) E por falar em provas, dá um bocado de dor-de-cotovelo imaginar Xavier Cugat se apresentando na capital do fim do mundo – uma mão na baqueta, outra segurando um chihuaha. Aírto Moreira e Waltel Branco zanzando pelo Centro, antes de entrarem no circuito internacional. Norton Morozowicz dividido entre o erudito e o popular. E Roberto Muggiati escrevendo sobre todos eles, antes de se mandar para a revista Manchete.
A propósito de perdas, uma das passagens mais impressionantes das recordações de Adherbal é a noite de 1979 em que Fernando Henrique Cardoso e Lula jantaram juntos no Bar Palácio e falaram com os mortais, embalados pela farofa de ovo, quitute local. Daquele encontro saiu a matéria-prima para a teoria da “gaita” do café e sua influência no jazz. “Foi a melhor entrevista que não fizemos”, brinca. Quando à segunda, sabemos agora, ele já se redimiu, ao fazer de Curitiba no tempo da jazz band a sua melhor reportagem.