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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

No fim dos anos 1990, Diogo Mainardi pontificava como campeão de cartas da imprensa brasileira. Todas as semanas, a revista Veja – na qual o escritor assinava uma seção ardida como pimenta – exibia as marcas olímpicas do colunista. Um Michael Phelps. Ganhar prêmios é uma delícia, mas nenhum prazer se compara ao de receber pilhas de mensagens dos leitores, mesmo quando te mandam para a pqp. Era o caso. Tenho a impressão de que milhares amavam odiar o Mainardi, um sentimento esquizofrênico alimentado em tempos idos da imprensa, hoje traduzido nas medições de clicks e seus campeões de audiência, candidatos ao inferno do esquecimento.

Sendo frio e calculista, o Mainardi da primeira fase – e por primeira fase se entenda aquela em que não se escorou na muleta de falar mal do Lula – estava no melhor de sua forma. Tal qual o sátiro Paulo Francis, seu ídolo confesso, parecia tomado por um demônio sempre que colocava a mão na pena. Entrevistei-o por ocasião do lançamento do livro Contra o Brasil, misto de romance e peça de teatro montado com excertos dos impropérios que estrangeiros famosos – a exemplo de Albert Camus e Levi-Strauss – reservaram ao país. Impressionava sua polidez de almofadinha, em nada afinada com o veneno de seus textos dominicais.

Num dos textos da Veja, comparou os gastos da feira de livros de Reggio Emilia, na Itália, com os de uma festa boiadeira de Maringá, no Norte Novo. Mesmo sendo Maringá um Eldorado, seus índices culturais levavam uma surra se comparados aos de Reggio Emilia. A diferença estrondosa se dava graças a um baratíssimo evento literário, tão tradicional na região quanto as ciabattas. Nem é preciso dizer qual a moral da história. A propósito, tempos depois não seria necessário ir à Itália para saber dos ganhos das políticas de leitura: bastava comparecer à Jornada Literária de Passo Fundo (RS), um desses rincões onde o Brasil que lê é também o Brasil que não vive de catar papel na ventania. O colunista maldito tinha razão.

Lembro igualmente de uma coluna que fez doer as canelas. Mainardi sapateou em cima dos caixões para dizer que os pobres do Brasil são ótimos. Os melhores do mundo, aliás. Nossos pobres, escreveu, fizeram a lição de casa: inventaram o chorinho, o samba, o carnaval – não lembro se citou as cerâmicas do Mestre Vitalino e os turbantes de Carmen Miranda. Já nossos ricos… Correm de kart, desprezam a ciência, adormecem à terceira página de um livro – mesmo se for um do Augusto Cury. Pior: ao contrário do que muitos acreditam, também têm o hábito de botar a mão no jarro.

Como lhe cabia no papel de anarquista intelectual, Mainardi acertou no atacado e errou no varejo. As castas mais altas nos deram a pintora Tarsila do Amaral, o bibliófilo José Mindlin, o editor Charles Cosac, os irmãos Salles, para citar alguns dentre os gatos pingados. Mas é de fato difícil sustentar, grosso modo, que os bem-nascidos do país fazem jus à própria sorte, retribuindo a Pátria Mãe Gentil. Longe de mim cultivar a amargura ou alimentar maniqueísmo. Toda essa conversa mole é para dizer que nunca mais olhei para os pobres da mesma maneira depois do Mainardi. Perdi a conta das vezes em que repeti suas afirmações sobre nossos magníficos pés-rapados. Admito que as adotei no lugar do ditado que ouvia de minha avó lusitana: “Não devas aos ricos, não prometas aos pobres. Porque rico adora dinheiro e pobre adora favor”.

Por ironia, está nas fuças de que o maior preconceito dos brasileiros é… em relação aos pobres. A soma de piadas em honra dos destituídos de money-bufunfa-dobrões, chuto, supera as destinadas às loiras e aos gays. A primeira vez que me dei conta disso foi ainda nos tempos do Orkut. Uma amiga de redação leu para mim o teste “Saiba se você é pobre”. Listava práticas como colocar bombril na antena da tevê, virar o bujão de gás e prender as tiras das havaianas com um araminho. Por baixo. Lembram? Me encaixei em todas.

O problema do sarro tirado dos mais humildes não é o sarro em si. A turma da havaiana reciclada pode estar nem aí para a Hora do Brasil. As pesquisas do publicitário Renato Meirelles, criador do Instituto Data Popular – voltado para a classe C –, mostram que a “turma da geral”, se me permitem, boceja, arrota e peida para o verniz da pequena burguesia. Detesta vitrine de loja com aquele manequim esquálido e pós-humano, a bordo de um modelito “quase” exclusivo pensado para quem pesa 40 quilos. Prefere quantidade, pilhas de moletons e de calças jeans. Se duas mulheres desse grupo se encontrarem de vestido igual num casamento, uma delas não vai sair se arrastando. Tirarão fotos juntas, postada na rede com a legenda “Chicotinho e Salto Alto”.

Prato com miséria de comida e nome que mais parece título de nobreza? Fala sério. Celebridade que faz propaganda de loja de departamentos? Conta outra. A melhor publicidade é a que sai da boca da vizinha, cujas recomendações podem levar à falência a lojinha da Suzy. Mensagens transcendentes? Só podem ser empulhação. Ah, a classe C compra de sacoleira na porta de casa. E não subestimem – o povão adquire até passagem para Paris se rolar simpatia no atendimento, o que, em se tratando de Curitiba, é um problema.

Claro, nem tudo nas classes populares se resume a acordos de fartura e coleguismo no mutirão. Se tem uma coisa que deixa os mais pobres buzinas é ter de tirar tudo da bolsa para passar na porta do banco. São sensíveis a qualquer sinal de desconfiança, reflexo de pertencerem a gerações de acusados de terem roubado a caixa de fósforos e a caixa de joias da patroa. Em miúdos, Renato Meirelles mostrou que o cotidiano de quem leva os dias na ponta do lápis não se resume a virar bujão de gás para economizar. As soluções que dão para seus perrengues podem até ser engraçadas. Eles mesmos (ou nós) são craques em rir de si mesmos. O enredo fica ruim quando a cultura popular, reduzida ao pó do preconceito, deixa de ser entendida como uma manifestação fina do “espírito humano”, termo que não se limita à obra de Michelangelo, à literatura de Eça de Queiroz ou às teorias de Einstein. O mundo dos pobres tem menos crase e menos vírgula, mas é do balacobaco.

É fato que, com a ascensão da nova classe média, os menos endinheirados deram de ficar cada vez mais parecidos, e tão chatos quanto, digamos, essa entidade intragável chamada “cidadão consumidor”, a quem até o cosmos deve agradar. Resta como consolo olhar para as classes D e E, últimas trincheiras de brasileiros não abduzidos pela Netflix. Para além da dureza que é viver na informalidade, essa turma surpreende, em especial quando usa da maior de suas armas – a palavra – para ganhar algum trocado. Alguém devia registrar os discursos feitos por quem pede esmolas na rua. Mainardi tinha razão: temos os melhores pobres do mundo.

Exemplo. Uma destas colunas na Gazeta do Povo foi feita com Leonardo – um adolescente cortiçado que vendia desenhos em HQ no Centro de Curitiba. Pela observação, Léo sabia que homens acompanhados compravam seus quadrinhos para impressionar a namorada. Quem sabe a bondade com um guri garantisse algo mais do que beijinhos no escuro do cinema. Tinha dentre os clientes, também, pais que queriam dar lição de civilidade aos filhos, acusados em público de gastadores e ingratos. O garoto não deixava de abordar famílias e casaizinhos – dim-dim garantido. Sabia também o ponto exato onde se instalar na porta dos shoppings. Se ficasse na distância exata, nem tão perto nem tão longe, ganhava a solidariedade dos seguranças. Léo era um estrategista de raça, formado na penúria. O sentimento por ele poderia ser o de pena, mas merecia admiração, o que é muito mais bacana. Se essa régua fosse usada, ninguém desprezaria um plá com o guardador de carros.

Dentre as manhas usadas pelos que vivem no sereno – como não – está a companhia de um cachorro. Eles manjam: na cabeça dos “maiorais”, alguém que trata bem um animal não representa um perigo. O cão serve de passaporte. Não raro é carregado no pescoço, o que desperta suspiros seguidos de fotos no celular. Na cartilha dos miseráveis também ganha impulso a prática de dizer a verdade: “Me dá algum dinheiro para a bebida”, avisam. Dia desses, vi um que colocou vários copos no chão de sua esquina, para que ali tilintassem as moedas. Ao pé de um estava escrito “cachaça”; no outro, “comida”; e, ainda, “moradia” e “roupa”. O público que escolhesse qual necessidade suprir. Desarmados pela startup, figurões soltavam seus tostões. No copo da cachaça.

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