José Carlos Fernandes

O barbeiro-livreiro do Conjunto Atenas 2

José Carlos Fernandes
06/05/2018 21:00
Thumbnail

Evoti Leal é o barbeiro que distribui livros próximo ao terminal do Campo Comprido. Foto: Marcelo Andrade. Arte: Felipe de Lima Mayerle.

“Cuide para não acertar na verruga”, avisa o freguês, antes de sentar e pedir para “abaixar a peruca”. Na “Barbearia do Gaúcho” – uma portinha modesta no Conjunto Habitacional Atenas 2, Campo Comprido – é assim: sem cerimônia e com intimidade. A única coisa difícil é guardar o nome do barbeiro: Evoti – Evoti Leal, 69 anos recém-completados e não denunciados.
Em volta, tudo indica que o dono de estabelecimento é gaúcho. Há emblemas do Grêmio F.C. pelos cantos. Na placa em cima da porta, a foto de uma bandeira do Rio Grande do Sul. A barbearia é o caminho mais curto entre os Pampas e os Pinheirais. Não tarda e o patrão conta que até seu encontro com Curitiba se deu numa data de arrepiar os riograndenses – foi num 20 de setembro de 2001, Dia da Revolução Farroupilha, justo quando se abalou de Pelotas para comprar a casa onde vive ainda hoje. Foi seu momento gaudério – em gauchês, “aquele que não tem paradeiro”. Mas passou. Não lhe peçam que arrede o pé – é um ateniense convicto, gaúcho de fato, curitibano em algum canto da alma.
Há algo mais sobre Evoti impresso naquele ambiente – o senhor barbeiro é também um leitor castiço. Quem passa pela Rua Cidade de Coronel Freitas, 267, no Atenas 2, antes da cadeira da tradicional marca Ferrante – e da pia de lavar os cabelos – vê é uma estante forrada de livros. Está na calçada e não precisa pedir licença para folhear os exemplares. Nem para levá-los embora. São obras sem dono, destinadas a voar, como lhe ensinou a turma da Freguesia do Livro, projeto cultural que distribui romances, poemas, contos, ensaios, obras de referência e o escambau pelos quatro cantos da cidade, nos confins do Paraná e nos sertões, caso alguém se disponha a transportá-los.
O encontro de Evoti com Jô Bibas e Ângela Duarte – as duas fonoaudiólogas que fundaram a Freguesia do Livro – não teve segredo. Estava escrito. Faz três anos, o barbeiro soube que a dupla recolhia livros que as pessoas não queriam mais. E que davam um jeito para que encontrassem novos donos, um final feliz. Gostou da ideia, aficionado nas letras que é, desde guri, quando corria solto pelo Paternon de Porto Alegre, onde nasceu. Passou a mão no telefone e pediu para fazer parte da confraria. Em pouco tempo, a Barbearia do Gaúcho se tornava um dos únicos espaços de leitura num raio de quilômetros. A vizinhança estranhou a combinação de literatura com navalha, mas se rendeu. A fala pausada, os 35 anos de profissão e os olhos muito azuis de Evoti, sempre a fitar, impõem confiança.
A propósito, ele deve ser o único Evoti do planeta. Os pais morreram sem nunca lhe confidenciar as razões do nome estranho. A pista que lhe resta é a existência da cidade de Ivoti (RS), cujo significado é “rio das flores”.

***

Ainda que fique numa estreita rua de bairro, o velho Campo Comprido, a Barbearia do Gaúcho está de frente para um centro municipal de educação Infantil (CMEI) – cujo barulho equivale ao de uma passarinhada. Fica também nas barbas de uma igreja, além de próxima de uma unidade de saúde. Some-se que o vizinho Atenas 1 é um principado de 1.712 casas e apartamentos, algo como 7 mil moradores. Ou seja, movimento, não falta. Nem pergunta. “Deu de vender livro, gaúcho?”. Evoti teve de explicar que era de graça – e que de graça alguém podia deixar um livro em troca no lugar. Toma-lá-dá-cá. “É assim que funciona”. Funcionou.
Uma leitora faminta de Sidney Sheldon aprovou a novidade. Pôs seu O outro lado da meia-noite para circular no Atenas, e catou um Se houver amanhã. Breve deve gabaritar a obra completa do norte-americano – 32 títulos capazes de prender o leitor por horas, sem chance para a missa nem para o mercado ou para o namoro. A seu modo, a história de Evoti com a Cohab onde mora lembra a da viúva Florence, personagem A livraria, obra de Penélope Fitzgerald (faz pouco filmada por Isabel Coixet). De mudança para a pequena Hardborough, na Inglaterra, a mulher mexe com a pasmaceira municipal ao oferecer… livros.
A resposta à “livraria da barbearia” foi tamanha que Jô e Ângela – as criadoras da Freguesia – nem precisam mais se abalar ao Atenas 2 para repor o estoque. Os próprios moradores dos 670 domicílios do conjunto – erguido em 1983 – se encarregam de manter a estante em posição de fartura. Semana passada, os interessados tinham a seu dispor best sellers como O incêndio de Troia, de Marion Bradley; o cult Linhas órfãs/aforismos, de Miguel Sanches Neto; e O destino de Perseu, de Luiz Galdino, para citar três de mais de 30 títulos da estante. Sem falar numa pilha de enciclopédias com capa vermelha desbotada, aquelas que nos idos da pré-internet davam a origens a cópias à mão, em papel almaço, amarradas com laço de fita e enfeitadas com brocado. Quanto mais penduricalho no trabalho escolar, mais nota.
Mesmo com toda devoção que nutre pelos livros, Evoti Leal – o barbeiro – não é de seduzir terceiros para a leitura. Seu método é à gaúcha. Quem gostar do ofício, que venha ao seu encalço. Não raro, enquanto o pessoal escolhe o que levar, ele fica num quartinho dos fundos, por trás da porta de vidro, às voltas com seus próprios escritos. Durante três anos, pesquisou e escreveu o livro Bastidores do espiritismo. Diz que é sua resposta aos críticos da doutrina à qual aderiu ainda na infância. Fez duas edições caseiras, distribuídas aos mais chegados.
No Atenas, todo mundo sabe – o dono da barbearia é leitor (anda empolgado com a obra do israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens e de Homo Deus, o mesmo que o ex-presidente Lula lê na solitária do Santa Cândida). E escritor. Quem chega para um corte, mesmo que peça um topete igual ao do Neymar, capricha ao puxar um papo – Evoti é um sujeito doce, mas tem engulhos de conversa fiada. “Aqui são assuntos mais elevados. O pessoal já conhece meu jeito”.
A biografia intelectual do barbeiro começou por volta dos 10 anos de idade – com a leitura de A gênese – os milagres e as predições segundo o espiritismo, de Allan Kardec. Deu continuidade a uma tradição. Dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – realizada de quatro em quatro anos pelo Instituto Pró-Livro, desde 2002 – indicam os espíritas ostentam os melhores índices de consumo das literaturas, especializadas ou não. Outra tradição na qual bebe é a da discrição dos seus confrades, avessos à propaganda. Não lhe peçam para falar da boca pra fora sobre vida passadas, mediunidade ou práticas de caridade. No máximo, Evoti conta das palestras que dá no Grupo de Caridade Meimei. E que faz voluntariado às segundas e terças num grande hospital de Curitiba. Nestes dias, a “Barbearia do Gaúcho” não abre. Para compensar, tem expediente no sábado e no domingo de manhã – justo os de maior movimento. Há quem saia dali de cabelo novo e nas asas de um livro. Simples assim.

***

Dica – vale assistir a Severina, segundo longa-metragem do carioca-curitibano Felipe Hirsh, da Sutil Companhia de Teatro. Obra – filmada no Uruguai e em espanhol – é adaptação de texto do guatelmateco Rodrigo Rey Rosas. Trata dos mistérios da leitura em papel, justo no momento em que gente sem luz aposta no fim dos livros físicos, no “tá tudo na internet”. Que preguiça. Tem uma cena matadora – a do grupo que faz uma caixa de ressonância com versos lidos em voz alta, num sarau de livraria. Uma velha livraria de verdade. Só vendo, tão lindo é.