José Carlos Fernandes

O homem que dá asas aos livros

José Carlos Fernandes
29/12/2019 20:00
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Foto: Fábio Matavelli/Arte: Felipe Lima

O professor
universitário Idomar Augusto Cerutti, 50 anos, virou uma referência em matéria
de difusão do livro e da leitura. Seu projeto – o Pegaí Leitura Grátis, criado
em 2013 –, figurou este ano entre os finalistas do Prêmio Jabuti na categoria
“Fomento”. Concorreu com um gigante nesta seara, a campanha “Leia para uma
criança”, do Itaú Cultural. Os números confirmam o som e a fúria que movem o ativista:
em seis anos de lida, o Pegaí pôs para circular 280 mil livros – a maioria
doado por pessoas como você e eu, no melhor do estilo “desapega”.
Um total de 14 cidades
paranaenses – servidas por 65 pontos de distribuição de livros – é atingido
pela iniciativa, cujo impacto pede para ser medido. Boa parte dessa performance
se deve aos aproximados 180 voluntários que cercam Idomar. Os guris e gurias
vão da categoria “mais atirados”, aqueles que fazem parte do conselho diretor e
ostentam kit completo de carteirinha de sócio da confraria e camiseta, chegando
a estudantes que se oferecem para dar uma mãozinha nos mutirões, em troca de
certificado de horas complementares. São todos bem-vindos, e esse é um dos
trunfos do Pegaí.
Tão impressionante
quanto essa rede – cujos gráficos seguem no crescente – é o fato de ter nascido
da ação de um sujeito que gravitava em torno do mundo do livro. “Eu não sou de
Letras”, avisa de cara, pondo abaixo expectativas. O recado tem um efeito
terapêutico. Idomar se incomoda quando esperam dele opiniões cimentadas sobre índices
de leitura, comportamento de leitores ou prognósticos editoriais. É outro o seu
quadrado. Tem graduação e mestrado na área da Informática e leciona nos cursos
de Engenharia da Computação e Engenharia de Software da Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG), nos Campos Gerais. “Sou um homem que tende a calcular”,
resume, para dar a medida da confusão: os índices de leitura são uma casca de
banana. Imprecisos, duvidosos e difíceis de garimpar, podem enganar o mais
ladino dos estatísticos. A régua da leitura é cultural – e a cultura resiste
bravamente à tirania das porcentagens. Foi nesse jogo que se meteu. Diz ele que
passa bem, obrigado.
Some-se à conversa que
Idomar Cerutti não se considera um modelo de leitura. Nem agora nem nunca. Como
a maioria de nós, teve acesso aos livros pela escola e provou José de Alencar e
Machado de Assis goela abaixo, valendo nota, sem um pingo de sedução. O efeito
colateral foi a aversão à leitura, amenizada na adolescência, quando descobriu
o Clube do Livro. Agarrou-se feito carrapato aos suspenses de Agatha Christie,
paixão substituída à força pelos manuais de computador, assim que entrou no
ensino superior. Foi um anticlímax.
Da experiência, ficou a
tal da brasa dormida, reacesa, anos depois, quando assistiu a uma reportagem do
telejornal Hoje sobre um grupo de
motoboys que criou uma bicicloteca. “Aquilo me deu um click. Um motoboy faz um
troço desses e eu dentro de uma universidade não consigo?” O Pegaí estava a um
passo de sair da casca. Como lembra Cerutti, “não houve muita magia”. Ele começou
a pedir livros nas redes sociais, a garimpar patrocínios e chamou quem entendia
do riscado, um publicitário. Uma das primeiras ações atendia pelo nome de “Pegada
Cultural”, espécie de arrastão capaz de colocar 300 livros doados numa estante
e deixar acontecer. A cada 15, 20 dias, editava uma nova “Pegada”. Podia ter
sede no hortifrutigranjeiro, na praça, na frente de uma loja famosa.
Foi divertido. O que
Idomar Cerutti não esperava era que o desejo de garantir acesso aos livros fosse
virar uma sangria. Hoje, as ações lhe consomem até quatro horas/dia, sem folga
para conversa mole. “Não pergunte o que me move. Não sei. E talvez seja melhor
assim”, avisa, com a sinceridade habitual. O idealizador do Pegaí não é dado a
firulas, a discursos ou a conversas motivacionais. Prefere contar “como se faz
para chegar lá”.
**
As histórias de
parceria do Pegaí com o setor público e privado não são apenas ótimas: merecem
ser copiadas. Exemplos? Calcula-se que o hoje Instituto – beneficiado pelo
programa Nota Paraná – receba doações de livros de 160 cidades paranaenses. Por
onde quer que passe um ônibus das viações Princesa dos Campos ou Garcia, para
citar duas colaboradoras, o interessado pode despachar obras, sem
aborrecimentos. Em troca, as empresas têm o ganho extra de ver sua marca “agregar
valor”, como se diz nos ambientes corporativos. Até a administração do
Aeroporto Internacional Afonso Pena se voluntariou, ao apoiar a campanha
“Liberte seu livro”, que incentiva viajantes a doar o que leram nos voos.
A colaboração com o
Pegaí, aliás, pode ser uma “coisinha de nada”. Muitos parceiros descobrem que é
simples e prático entrar na dança. É o caso do comerciante ponta-grossense que
empresta sua pizzaria para as reuniões do conselho do Pegaí, em horário
anterior ao da abertura para a freguesia. O tempo ocioso, antes ocupado apenas
por garçons lustrando pratos, se converte em marketing cultural. De resto, toda
a turma fica para comer uma quatro queijos, uma calabresa, dar umas risadas e,
claro, falar sobre livros.
Difícil imaginar que
algum empresário resista à logística sugerida por Cerutti. Trata-se de um hábil
atirador de dardos. Suas propostas vêm embaladas em português claro, com
garantia de incômodo nenhum e custo zero. Como ele mesmo observa, fracasso
mesmo, só se o interlocutor não gostar um “tico” de leitura. O contrário também
exige malabarismos. Há quem alimente ambições elevadíssimas em torno do Pegaí,
das quais nem Monteiro Lobato daria conta. A regra da sinceridade é aplicada do
mesmo modo, sem anestesia. “Não somos uma associação de leitores. Não
promovemos contação de histórias. O que faço? Todo mundo tem livro parado em
casa. Você pega e me manda. A gente toma posse e disponibiliza. Alguns vão
levar e deixar mais 30 anos em casa, do mesmo jeito. Mas no meio do caminho
achamos um leitor. É uma evolução”, descontrai.
Funciona como uma
locomotiva. Assim que um livro é doado, vai para a triagem, no QG que funciona
numa área emprestada pelo Supermercado Tozetto, em Ponta Grossa. São divididos
por assunto, mas sem contabilidades sobre “quantos títulos de poesia foram
doados em ...”. Essas minúcias, um dia feitas, travavam o processo, angariando
mais mofo do que leitores. Na sequência, o material recebe carimbo do Pegaí, e
chega o mais rápido possível a um dos cento e tantos pontos de distribuição –
que podem ser uma geladeira grafitada, caixas-capelinhas, pontos de ônibus e o
que mais a imaginação permitir.
Os agentes desestimulam
a doação de “livros de estudo”, “de religião” e “enciclopédias”. Mas essas
categorias podem aparecer no bolo, por força da militância dos doadores ou da
necessidade de se livrar do livro de Química do ensino médio; ou da “Barsa”
herdada da avó. Cabe ao Pegaí – que desde 2015 é uma instituição de utilidade
pública – encontrar um destino para o material que foge à cláusula pétrea de promover
a leitura literária livre, desinteressada e adulta. Livros técnicos, outra
modalidade que escapa ao espírito da coisa, acabam sendo trocados por poesia e
prosa nos sebos da cidade. Mesmo os livros infanto-juvenis são encaminhados em
mala direta para escolas, o que evita solene dores de cabeça ao ter de arbitrar
o que é próprio ou impróprio.
No mais, um livro do
Pegaí “pegado” não precisa ser devolvido, mesmo sendo de bom grado que voltasse
à prateleira. Não há fichas de empréstimo. Gostou, levou, sem cobranças. Anárquico
na alma, o Pegaí também é movido a outro fator – a criatividade. É preciso ser
malabarista para dar conta das 1001 ações promovidas por Cerutti e sua turma.
Eles são hiperativos. Mostram-se capazes de colocar pencas de livros no
corredor de um ponto qualquer e fazer um divertido serão de triagem. De
organizar restauro de obras dentro do Presídio Estadual de Ponta Grossa. De
editar livros em domínio público. De convencer autores a doar uma reedição, sem
custos. De chegar aos ouvidos de John Wood, autor do best-seller Saí da Microsoft para mudar o mundo, e
arrastá-lo para a carta de parceiros. Essa é boa.
Idomar se deu conta que
precisava da doação de livro vinda de uma figura notável, para poder dizer aos
resistentes a frase “até fulano doou”. Pois o fulano acabou sendo John Wood,
criador da ONG Room to Read de difusão da leitura, cujo lastro chega aos
confins da Terra Plana e da Redonda também. Para encurtar, depois de muita
canseira, o brasileiro conseguiu fazer chegar um email ao ex-bambambam do mundo
digital convertido em mascate da leitura. Apresentou o Pegaí sem falsetes, “em
inglês tupiniquim”, como conta. Recebeu uma resposta lacônica, mas Wood
consultou sua editora no país, a Sextante, sobre a veracidade das informações.
Bingo. Da conversa curta nasceu a autorização para uma edição não
comercializável da obra do americano, made
in
Ponta Grossa, agora distribuída nos nossos sertões.
No mais, o Idomar agora
pode dizer “até John Wood doou. E você?” Pois é.