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O jovem tem razão, afinal
| Foto: Felipe Lima

Um dos gurus dos nossos tempos – o economista britânico Tony Atkinson (1944-2017) – fez da sua velhice uma tribuna. Alertava que o mundo não entraria nos trilhos enquanto continuasse privilegiando tecnologias que não reunissem pessoas, que não gerassem trabalho, que não servissem para nos tirar da masmorra da casa. Alistava-se, por exemplo, entre os que se perguntavam para que diabos serve um carro sem motorista.

Mais. Atkinson defendeu a taxação das grandes fortunas. Fazia seu manifesto com base em vastos conhecimentos de subdesenvolvimento global, sendo acolitado por uma legião de cabeças pensantes, gente como outro Tony, o Judt (1948-2010), historiador britânico; o economista francês Thomas Piketty; e o linguista canadense Steven Pinker. Por aí vai a banda. O pós-guerra gerou uma concentração de renda pornográfica em tudo que é canto do planeta e, simples assim, não tem como tanta gente – 7 bilhões de pessoinhas – viver debaixo do mesmo teto, respirando o mesmo ar e sonhando em pegar uma onda nas mesmas praias do Nordeste brasileiro sem que se divida o bolo em partes minimamente justas. Tony, em resumo, fazia eco aos ouvidos meritocráticos, aos insensíveis aos programas de reparação social. Tristes tigres.

De tudo o que defendeu, contudo, uma bandeira merece ser hasteada mais alto, saudada com tiros de canhão, brindada com um coro de crianças refugiadas. O profeta Atkinson via urgência na implantação de políticas para a juventude. Era radical em sua proposta. Fazia um raciocínio elementar. Como nós, os mais vividos, reservamos para a moçada um mundo violento e sem emprego, resta-nos uma saída digna – promover uma espécie de poupança transnacional para que adolescentes e jovens sobrevivam à turbulência antes de chegar à vida adulta. Loucura, loucura, loucura? Necas. Com perdão ao clichê, precisamos falar sobre nossos moços, pobres moços.

Na última década, verifica-se uma tensão planetária em torno da juventude. Inclusive porque ela míngua a olhos vistos

Essa conversa, em se tratando do Brasil, claro, tem tinturas fortes. Sendo curto e grosso, por aqui seguimos matando nossos jovens. Mais – matamos nossos jovens pobres e negros. Calcula-se que 20 anos de crimes contra a juventude brasileira somem R$ 450 bilhões de perda em força produtiva, sem falar no incalculável prejuízo no capital humano. Os que sobrevivem a esse genocídio podem não encontrar sorte muito melhor. Enfrentam alta evasão no ensino médio e, mesmo entre os míseros 13% que chegam ao ensino superior, uma média de 35% amarga o alfabetismo funcional. Em miúdos – tiveram uma formação ruim, que os condena a baixos salários e a uma existência tediosa.

É trágico, mas é de supor que a maioria dos brazucas conheça esse texto, tanto é repetido. Difícil não se sentir tocado, salvo aqueles que têm um tijolo no lugar do coração. Mas causa paralisia, posto parecer um problema crônico, passível de resolução mediante apenas uma reviravolta federal. E a gente vai levando, à espera de um milagre. Há, contudo, um outro texto, ao qual não costumamos atinar muito bem. Enquanto se fala do jovem vitimizado das gigantescas periferias urbanas, o problema continua sendo “do outro”. Resta saber como lidar com o jovem que está ao nosso lado, classe média, escola paga, celular com internet e roupa legal. Ainda que em outra medida, ele também está na “escala Atkinson”. Vale uma prosa.

Na última década, do Japão aos Estados Unidos, passando pela Velha Europa, verifica-se uma tensão planetária em torno da juventude. Inclusive porque ela míngua a olhos vistos, restando se perguntar como será viver numa sociedade envelhecida. Muitos dos pouquíssimos jovens serão os dos países mais pobres, com escolaridade baixa e, não é de se admirar, expectativas humanísticas tão modestas quanto. Para além da questão demográfica, interessa a esses estudos compreender a mentalidade desses guris e gurias que nasceram conectados, regidos por relógios cujos ponteiros giram velozes e furiosos. Conhecer o que está em pauta é de grande valia – inclusive para perceber que esse impasse atinge todas as camadas sociais. Vamos ao pouco que já se sabe.

Para início de conversa, uma boa medida é tratar a questão sempre no plural. Em vez de “juventude”, “juventudes”. A explicação não tem segredo. Está arraigado no imaginário que a mocidade é um período de transição. Escapa das mãos, o tal do doce pássaro da juventude. Millôr Fernandes sabiamente dizia que a nossa única cara de verdade é a da maturidade, porque é a que dura várias primaveras. Mesmo assim, um dos consensos dos estudiosos em torno da mocidade é a de que se trata de uma fase cheia de personalidade. Burrice da grossa tratá-la como nuvem passageira. Quem a melhor definiu foi Oscar Wilde, nos inícios do século 20, ao dizer “não sou jovem o bastante para saber tudo”. Daí a recomendação de falar em “juventudes”. No singular ela soa como um período. No plural, como um oceano de mistérios. E se assim não era, sei lá, em 1945, assim o é em 2019.

Em resumo, os observadores da juventude – e são muitos – dizem que: 1. Os millennials e os pós-millennials, como já se diz por aí, são “presentificados”. Ou seja, têm pouca pachorra com o passado, por isso não o cultuam. O motivo é que o famoso “no meu tempo”, frase que os coroas adoram gabar, lhes soa falsa. Se o período anterior era assim tão bom, por que teria gerado uma sociedade tão desigual, violenta e sem trabalho? 2. Aproveitando a deixa, os jovens de hoje em dia são profundamente honestos e transparentes. Logo, não há como se mostrarem satisfeitos com elogios passadistas, que outra coisa não são senão uma solene falta de educação. Equivalem a dizer para a moçada que o melhor já se foi, e que o azar é todo deles. Não cola. O tempo deles é hoje.

Pausa pro xixi.

3. Ainda na carona da afirmação anterior, os jovens – embalados pelas contínuas mudanças tecnológicas – vivem uma tortura raramente declarada. Diferentemente de outras épocas, quando ser adolescente era sinônimo de sentir o tempo como algo vagaroso, para eles o tempo é um dínamo. Tanto é que está virando arqueologia o termo “geração”. De um ano para outro, dois no máximo, há mudanças profundas entre um grupo e outro. Entendi esse fato apenas no dia em que ouvi de um aluno: “Eu já tenho 20 anos”. Para mim, o natural seria “eu só tenho 20 anos”. Logo captei o que ele queria dizer. Quem trabalha com essa clientela sabe. Professores, por exemplo. Dia desses ouvi do arquiteto José Marcos Nowak que a cada novo ano letivo ele é o mesmo professor de 50 anos, e os alunos de 17 anos são outros alunos de 17 a cada ano. Qual o preço? Nunca repetir a mesma aula. Nunca a mesma conversa. Distâncias são cada vez maiores no exíguo espaço da sala de aula. E a sala vira um porre monumental.

Um dos consensos dos estudiosos em torno da mocidade é a de que se trata de uma fase cheia de personalidade. Burrice da grossa tratá-la como nuvem passageira

4. A velocidade tem um efeito nefasto. Como tudo se dá a passos largos, a moçada fica apreensiva com o tal do futuro, pelando de medo de não conseguir achar seu ninho. E perder a vida, como o personagem errante do belíssimo livro Canoas e marolas, do gaúcho João Gilberto Noll. Pior – esse temor não costuma ser manifesto, em especial na sociedade brasileira, culturalmente fadada a desconsiderar as apreensões juvenis. Na tradição ibérica, ainda reina a mentalidade do “pau que nasce torto” e do “creme que saiu da pasta não volta mais”. E pau no jovem. Não causa espanto que haja tanta depressão e suicídio juvenil, curiosamente entre os criados debaixo das mais altas expectativas escalofobéticas geradas por seus pais, mas esse é outro parangolé.

5. Noves fora, outra marca da juventude é protelar a vida sentimental, o que lhe traz prejuízos emocionais severos. Quem manja do celibato juvenil é a psicóloga Jean Twenge, da San Diego State University. A figura do single, ou dos trintões que continuam ocupando o melhor canto do sofá da sala, como se estivessem à espera da Sessão da Tarde, é um fato. E o anticlamor do sexo tem a ver com todo o resto, como se pode notar. 6. Os jovens sentem falta de experiências. Ipso facto – foram criados superprotegidos, não raro por serem filhos únicos ou de famílias minúsculas, das quais emergem sem ter de se preocupar com a casa própria. A faculdade, fonte de frustração infernal, só faz protelar mais 4-5 anos a emancipação. Há quem diga que roupas rasgadas e tatuagens são cicatrizes simuladas por uma gurizada impedida de viver.

7. Por fim, nunca houve uma turma tão preparada. Mesmo nas classes médias, viajaram mais, falam outra língua, são mais tolerantes com a sexualidade dos outros, cuidam mais do meio ambiente. A sombra de tanta beleza é a descrença na política como motor para mudar a ordem do mundo. O jovem preso a seu grupo de amigos, que pensa igual, partilha as mesmas músicas e tem as mesmas atitudes sustentáveis, é uma verdade inconveniente. Seu pânico diante do que está fora desse círculo de confiança é flagrante. E, pensando bem, faz o maior sentido se a gente vestir o chinelo deles. O jovem tem sua razão, afinal. Eis o ponto de partida.

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