Redação

O “pão nosso” do Cruzeiro das Almas

Redação
07/07/2019 21:00
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Pai de santo Edinei cavalheiro do Terreiro de umbanda Toca, que tem um projeto com os carrinheiros. Foto: Albari Rosa. Arte: Felipe Lima. | Gazeta do Povo

O contador Edinei
Cavalheiro, 47 anos, não lembra ao certo quando se tornou umbandista. “Vai ver
que desde sempre”. Era guri em primeiras barbas ao descobrir o terreiro Pai
Maneco, em Colombo, perto da casa em que foi criado, no bairro Santa Cândida –
Zona Norte de Curitiba. Achou sua turma. O resto veio a galope: o encontro com
o santo – Oxóssi – e a revelação da mediunidade. Edinei recebe várias
entidades, em espaço governado pelo Caboclo Cobra Coral, cuja figura, em destaque,
pode ser vista no altar do Terreiro Cruzeiro das Almas (Tuca), fundado pelo
sacerdote há 12 anos, no Xaxim.
Edinei é conhecido pela
caridade e pela espiritualidade. O que pensa e sente está lavrado em dois
livros que levam sua assinatura (A
umbanda segundo o Caboclo Cobra Coral
e Uma
luz na minha vid
a, ambos em edições populares). Na vida como ela é,
comunica-se pelo whatsapp, canal de aconselhamento que lhe consome as horas e
os neurônios. Responde com regularidade beneditina aos apelos de sua centena de
filhos. “Eles fervem”, diverte-se, ao tratar da tarefa que divide com 17
colaboradores. Folga, apenas às terças feiras, “para não acabar com o
casamento”, brinca, a respeito de sua união de quase 15 anos com Carolina, sua
parceira na lida do terreiro.
Exceto as contendas com
alguns vizinhos – incomodados com a quantidade de carros que estacionam na
porta do centro religioso – vai tudo muito bem para Pai Edinei de Oxóssi,
obrigado. O local que criou movimenta em média 300 pessoas a cada sessão –
sendo 120 médiuns no total – 33 em linha direta com ele. De tédio ninguém
padece. Se às sextas a cantoria rola solta – com a ajuda dos “pontos” mais
populares da umbanda –, as quartas se mostram mais graves. Dez macas são
armadas no barracão, cobertas com lençóis alvíssimos, para receber doentes em
busca de conforto. Os casos mais relatados são câncer, estresse, depressão, “e muito
problema de estômago”. Para atendê-los, a concentração é máxima e o silêncio de
ouro. Não utilizamos o sangue, não
fazemos amarração – pois amarração, só se for sequestro (risos). Rezamos e
promovemos a solidariedade. É uma forma de ganhar respeito para a umbanda, avisa Edinei, antecipando-se aos
críticos de plantão, que ferem sem assoprar e se amarram mesmo é na
desinformação. “Discriminação religiosa? Já sofri, sofro, e aviso a quem
pratica o mal que está fazendo.”
Para surpresa geral, uma
das ações do “Cruzeiro das Almas” da qual Edinei mais se orgulha, o projeto
“Meu amigo carrinheiro”, sofreu achaques e chutes na canela, de tudo que é lado.
Cristãos das mais diversas matrizes e as próprias religiões afro não escondem a
estranheza diante de um terreiro dado ao socorro dos necessitados. E bota
socorro nisso. O pessoal chega a distribuir 19 mil pães por ano – acompanhados
de quase 3 mil litros de suco. É o milagre da multiplicação: uma única ação
pode desovar 4,5 mil sandubas e 9,5 quilos de mortadela nas mãos dos mais
pobres. Acrescente-se vestuário e mantimentos, podendo incluir material escolar
e festivais para corte de cabelo e barba. O próximo projeto é construir moradias
populares em regime de mutirão. Um piloto foi realizado, com sucesso.
Literalmente, o Cruzeiro das Almas bota o elefante dentro do Fusca.
Os números
impressionam. No total, os voluntários arrumam 3 mil quilos de doações a cada
12 meses. E o cobertor continua curto. Com a crise, o número de moradores em
situação de rua que procura os cruzados tende a superar os carrinheiros – 300
cadastrados até agora. O cansaço é evidente. Edinei é um homem magro, com
olheiras indisfarçáveis, voz grave e bem posta, típica dos conselheiros. As
muitas guias coloridas penduradas no pescoço o curvam um pouco. As jornadas
caritativas, outro tanto. Mas nada que abale sua mística e o humor refinado. “Eu
não sei mais viver sem fazer esse trabalho”, resume.
A história com os
carrinheiros começou por um acaso. Em 2007, ao abrir o terreiro, Edinei criou
uma caixa para doações, que transbordava a cada semana. Decidiu chamar gente
para ajudar na distribuição, no Centro da cidade. Numa dessas ocasiões,
encontrou um homem servindo cafezinho para a mendicância. Puxou conversa. O
desconhecido informou que havia caridade na redondeza todos os dias, “menos
segunda-feira”. “Pois segunda virou o nosso dia”, lembra.
Logo de cara, ao dar
roupas para um menino, alguém do grupo perguntou “qual o teu tamanho?”. A
resposta do piá foi “tio, meu tamanho é o do frio”. Serviu de sinal. Depois
disso, o pai de santo e seus seguidores decidiram doar cestas básicas e lanches
para catadores de recicláveis do Centro de Curitiba. A ação ganhou musculatura
– e uma sede informal, na esquina das ruas Engenheiros Rebouças com Conselheiro
Laurindo, para onde os fiéis do Cruzeiro das Almas migram... às segundas-feiras.
É sagrado e exige braços – um único mês pode exigir o repasse de até 180 cestas.
Os encontros não raro
se tornam sessões de desabafo e camaradagem. Onde mais dói o calo da turma da
reciclagem? A depender do que registram os ouvidos dos voluntários, a
indiferença. “Eles não conseguem um banheiro emprestado. Nem sempre ganham um
copo de água”, exemplifica. Cada carrinheiro se sente como se um automóvel
passasse por eles, na contramão, sem enxergá-los. Em tempo – Edinei e o pessoal
do terreiro se tornaram experts no mundo do lixo. Sabem firulas do esquema
criminoso de trabalho escravo nos barracões em que os catadores moram. Não
raro, as doações precisam seguir disfarçadas nas tralhas, para que não sejam
confiscados por “empregadores” e traficantes.
Durante as ações, a
regra é não falar de religião. Ninguém é arrebanhado ou doutrinado, o que não impede
alguns dissabores. Certa vez, ao ver as guias no pescoço de Edinei, um sujeito
armado se revoltou – esbravejou contra o que considera uma “coisa dos infernos”.
Mesmo assim, pegou uma cesta básica e avisou que ia comê-la na igreja que
frequentava. Ninguém o impediu – à revelia da arbitrariedade. Tempos atrás, um
agente de uma igreja disse a um carrinheiro que não devia comer o que lhe
serviam os umbandistas. E soltou uma ladainha de ignorâncias. Mas a fome falou
mais alto. “Pô cara, quer que eu coma a Bíblia?”
A passagem até que é
engraçada – ainda que os ataques a terreiros, verificados na Baixada
Fluminense, no Rio de Janeiro, os deixem nos nervos. O grupo está preparado
para o rojão armado contra a umbanda em tudo que é canto em que o preconceito
se aninha – incluindo onde não faz o menor sentido, como escolas e outras
igrejas. Ou no meio político.
Em 2015, ao receber
título de Utilidade Pública, da Câmara Municipal de Curitiba, numa iniciativa
da vereadora Julieta Reis, a turma do Cruzeiro das Almas sofreu achaques da ala
mais conservadora da instituição. A premiação foi feita quase que às escondidas
– tamanha a animosidade. Gerou desconforto, mas não mudou uma vírgula. O
religioso é sobretudo um distribuidor de abraços. Em vez dos desaforos sofridos
pela bancada da fé, prefere lembrar a noite em que seu terreiro recebeu a visita
de um pastor, que pediu um passe. O episódio permitiu o melhor dos mundos em
poucos minutos. Deu-se no “peji”, altar em iorubá, diante das imagens de São
Sebastião (Oxóssi), da Imaculada Conceição (Mamãe Oxum), São Lázaro (Omolu),
Iemanjá, Santa Bárbara (Iansã), São Jorge (Ogum), São Jerônimo (Xangô) – e da
estrela de Davi.
P.S. As visitas de não-umbandistas se sucedem –
em especial no evento chamado “Dia simples de viver”, com duas edições por ano.
O barracão de cem metros quadrados se converte em auditório para palestras
sobre saúde, dependência química, orientação jurídica e apresentações
culturais. Em edições recentes, passaram por ali a tenente da PM Luci Belão –
para tratar da violência contra a mulher, e o advogado Diogo Busse – conhecido
militante antidrogas. O terreiro é uma usina de ideias – é dos deuses.