José Carlos Fernandes

O passado é um tobogã

José Carlos Fernandes
25/11/2018 20:00
Thumbnail

Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A artista plástica Maria de Francisco se deu conta de que algo tinha mudado em sua casa no dia em que se flagrou, ao lado do marido Valdir e dos dois filhos do casal – Gustavo e Ludmila – na mesa da copa, raspando as bochechas para um exame de DNA. Ri da cena, sem pudores. Mal podia imaginar que uma bobagem – iniciada anos antes – fosse levá-los tão longe. Em 1994, ao visitar uma feira de variedades, Valdir caiu na fiúza de se debruçar numa barraca de brasões de família. Saiu de lá orgulhoso, com o improvável portal e as armas do seu clã, no qual estava inscrito embaixo, em relevo, a palavra “Francisco”. O suvenir foi parar em cima da porta principal do apartamento em que vive, no bairro do Juvevê, Curitiba. Está à vista de todos – e serviu para muitas piadas internas do quarteto. Até virar conversa de gente grande.
Valdir Francisco é um homem pequenino, ligado na tomada, com olhos cintilantes, dono de um espírito adolescente que só conta a favor. Soma 67 anos não denunciados. Economista de formação, fez carreira no Banco do Brasil, mas, assim como a mulher, nasceu fadado para as artes. Quando ainda estava na ativa como bancário, tomou de assalto o circuito de produção visual curitibano com esculturas que remetiam aos casulos do bicho-da-seda. O tema é sua paixão confessa – perguntem-lhe para saber e terão uma aula magna.
Natural de Paranavaí, no Norte Novo, pode não ter inscrito seu nome no time dos sonhos da escultura paranaense, mas não passou como uma nuvem. Além da surpresa de ver aquele sujeito devotado a planilhas entregue às artes plásticas, impressionou sua simpatia oceânica e curiosidade digna de um cientista saído das HQs. Parece não haver assunto que não lhe interesse. Alguns bem particulares – a exemplo de sua investigação em torno dos adornos de ferro que emolduravam os chalés protomodernos da capital. Pois, sem concorrência, Valdir é o maior especialista nessa conversa que, na sua fala, perde a aura de mero exotismo e se mostra uma chave para entender arquitetura, comportamento e serralheria artesanal – tudo junto.
Com esse perfil, não causou espanto que, depois da compra do brasão, passasse a estudar genealogia. Tão surpreendente quanto foi ter amealhado o filho para a tarefa. Em oposição à agitação juvenil do pai, Gustavo é exemplo de serenidade. Jornalista de formação, era chamado de “um príncipe” por suas colegas de faculdade, que não deixavam de lhe notar os olhos azuis, a educação e a elegância natural. Para coroar, era não só inteligente como capaz de dedicar horas a fio aos livros, sendo alçado ao posto de expert em uma pá de assuntos. Foi assim com a aviação, tema ao qual se entregou ainda piá – para desespero da mãe, que o via sumir de casa para contemplar pousos e decolagens no Aeroporto Internacional Afonso Pena, em São José dos Pinhais.
Deu no que deu. Tinha 20 anos quando escreveu seu primeiro livro, uma grande reportagem sobre os mais de 20 campos de aviação paranaenses em operação no período áureo do café, a partir da década de 1930. O estado não tinha estradas, mas não faltavam teco-tecos pelos ares, tendo a bordo barões da agricultura, ingleses e etcetera e tal, como a “Marcha das Putas” de Londrina veio a mostrar. O trabalho permanece inédito, a despeito da insistência para que Gustavo o publique. Ele tergiversa, até porque foi enredado por um outro tema que, com perdão ao trocadilho, o coloca nas alturas. Tudo culpa do brasão em cima da porta.
Não estava em seus planos seguir a genealogia. Trabalhou com jornalismo científico, passando para o esportivo, com um rápido estágio na cobertura política. Seus impressionantes conhecimentos em aviação acabaram se impondo, até entrar areia. Nos últimos anos, o jornalismo de nicho na internet se revelou um falso brilhante. Acrescente-se que nessa mesma internet ele não parava de encontrar informações, cada vez mais atraentes, sobre gente que já partiu. Começou pela sua. Se existia um brasão para os “Francisco”, poderia haver um para os “Ribeiro”, sobrenome da mãe, ainda que lhe parecesse improvável: por ser um tanto comum, acabaria por lhe colocar num tiroteio de fatos e versões. Mas, como é repórter, começou a fuçar e viu que estava enganado. Descobriu uma leva de antepassados espanhóis e – lá pelas tantas de seu voo – que o pai, de origem italiana e portuguesa, e a mãe eram primos em oitavo grau, o que mal podiam imaginar quando se conheceram, engataram namoro no portão e se casaram.
A essa altura, especular sobre os falecidos tinha virado uma cachaça. Com o pai, deu-se o mesmo. Ainda que de temperamentos diferentes, Valdir e Gustavo formaram uma sociedade informal de estudos genealógicos, cuja produção enche pilhas de pastas de plástico para documentos e gigantescas impressões de tabelas familiares. Juntos, conseguiram chegar a mais de 600 antepassados de quatro ramos da família. Os registros chegam ao século 16. Os rolos com os organogramas de ramos familiares não cabem numa mesa para 12 convidados. De analista refinado da aviação, Gustavo, 34 anos, saltou para o campo das consultorias, nas quais ajuda sua clientela a encontrar registros e pequenas histórias entregues ao âmbar. A crise econômica do país anda lhe deixando cheio de serviço. São muitos os que esperam comprovar ascendência e conseguir cidadania europeia. Ele confessa que essa obsessão às vezes cansa; encontra muitas narrativas boas, que ficam para depois quando os interessados descobrem que não vão conseguir um novo passaporte. Mal se dão conta de que conseguiram um ingresso para si mesmos.
Gustavo entendeu que tinha sido fisgado pela genealogia de uma vez por todas quando fez uma visita ao Museu do Imigrante, em São Paulo. Numa folga ao estilo cerebral, desatou a chorar ao entrar na velha hospedaria onde pernoitavam os recém-chegados nos navios. Sentiu-se parte do cenário, como se fosse catapultado, personagem de um folhetim espírita. E ali, mesmo sem saber, firmou seu compromisso com centenas de milhares de homens e mulheres cuja identidade não faz ideia, mas que se sente chamado a tirar das sombras. Não tem perdido tempo. Em parceria com o pai, lançou no primeiro semestre desta ano o livro Seda, plumas e bergamotas, com circulação restrita. Ali, compilam tudo o que descobriram sobre as famílias Peres e Menti, entre outras com as quais se misturam. O “Francisco”, a propósito, era Defrancesco, com origem no Sul da Itália, e descendentes espalhados pelos quatro cantos das Américas. Em comum, mesmo sem se conhecerem até pouco, os Franciscos têm a crença de que algum nonno da trupe tinha um tesouro. Virou humor: “os Franciscos se pegam imaginando o que fariam se esse prêmio lhes caísse no colo.
A incursão pela genealogia – como conta Maria – mexeu com as rotinas, e não só por causa da papelada. Há novos amigos. Os Francisco encontraram parentes da Virgínia, nos EUA, descendentes do mesmo Natale Nicola, que andou por lá e por aqui. Falam pelas redes sociais. Também se divertem com episódios pitorescos, como a dos dois parentes padres, ambos pais de filhos em Portugal, nos tempos idos. E surgem sempre as hipóteses sobre o que teria sido a vida dessa ou daquela tia – das belas às feias, das solteiras às que se encheram de filhos. Nessas horas, os gênios de um e de outro se manifestam. Valdir, mais dado às ficções, não se furta de levantar hipóteses sobre sua turma de sangue, todas dignas dos melhores folhetins. Gustavo prefere se limitar aos documentos, o que já é complicado o bastante. “Quase sempre a gente enfrenta frustração”, comenta.
É fato que são muitas as facilidades para desenvolver a genealogia, graças às maravilhas da web. A mais conhecida é o soberbo portal dos mórmons, que disponibiliza documentos sobre tudo o que é gente, como se tivéssemos ganhado ingresso para o Sétimo Céu. Permite encontrar gerações passadas, com uma fluidez impensável há algumas décadas. Mas não deixa de ser trabalho que exige cotovelos, olhos atentos e disciplina monástica. Nem sempre os mecanismos de busca funcionam como um tobogã. E encontrar um registro novo não representa uma alegria, a rigor. Pode ser que esteja ali um beco sem saída. Não vai haver avanços e todo o empenho vira poeira. De novo na estaca zero, é preciso voltar á maior das estivas: enfrentar cartórios, arquivos públicos e – não raro – atendentes entediados. Para Gustavo, o jornalista, essa é a realidade. Para Valdir, o artista, um estímulo a preencher os espaços vazios com narrativas deliciosas. Pai e filho fazem história.