José Carlos Fernandes

O Rebouças tem nervos de aço

José Carlos Fernandes
23/07/2017 19:00
Thumbnail

Felipe Lima

Há pouco mais de oito anos, o ensaísta norte-americano Marshall Berman – autor do delicioso Tudo que é sólido desmancha no ar – deixou de quatro o mercado editorial ao cometer uma peraltice memorialística, se assim se pode dizer. Quando todos juravam que ele já tinha dito tudo o que sabia, lançou Um século em Nova York, livro sobre uma única esquina da cidade mais eletrizante do mundo. O endereço da obra: a Times Square.
Quando guri, lembra Marshall – um legítimo maluco beleza à solta no sombrio ambiente acadêmico – sua mãe o levava até a Times Square para “tomar banho de luzes”. Mais do que um convite a consumir, os abundantes letreiros tinham sobre a senhora Berman um efeito colateral: em vez de ficar doida para comprar uma estola de pele de raposa, embebedava-se da modernidade néon. Os luminosos eram seu banho de sol, seu gim-tônica. Quem gosta de cidades, qualquer uma – Paris ou Piraquara –, entende a mãe do nosso amigo. Pena ela não ter conhecido a “25 de Março”, em São Paulo; o “Saara”, no Rio de Janeiro; a “Riachuelo”, logo ali.
Marshall Berman um americano intranquilo, à esquerda e amante de horrendas camisas floridas, levou a herança materna para o resto de seus dias. Tornou-se um fino pensador do espaço urbano, ainda que atípico, desses que nos convida a puxar a cadeirinha de praia e se refestelar na calçada, debaixo de buzinas e do escapamento dos carros. A gente só digere o que ele escreve se gastar, paralelo, alguma sola do sapato. É como se nos provocasse a olhar qualquer alameda – incluindo as chinfrins – na perspectiva da libertária Avenida Nevsky de São Petersburgo, sua especialidade, uma via que não obedeceu a sanguinários, os coroados e os não.
Em miúdos, depois de Berman qualquer lugar ganhou o status de um livro a ser lido – seja um muro pichado, uma praça com chafariz, uma cobertura erguida na frente de um prédio histórico para abrigar um casamento digno de um episódio de Relatos Selvagens. Cidades não se resumem a estilo construtivo ou a análises tecnocratas. Tudo na urbe está sujeito à interpretação. Há sangue e cultura junto com a caliça. A arquitetura é erguida com palavras. É poesia e prosa.
Berman, a propósito, esteve em Curitiba no final dos anos 1990 – visita coberta pelo então Caderno G. Nunca mais esqueceu da capital paranaense, da qual gostou na proporção inversa a que detestou Brasília. Citou CWB em entrevistas, à moda do cineasta Francis Ford Coppola, outro forasteiro ilustre a circular por essas terras frias, e do escritor francês Alain Robbe-Grillet, que diluiu em seus escritos esse sul do planeta onde gastamos nossos dias. Bem, a gente já teve mas sorte que juízo.
Irresistível a tentação de imaginar o que Berman diria se andasse por aqui hoje, deparando-se com tantos shoppings, condomínios fechados, carros empanturrando as ruas. Um bom roteiro pós-humano, pós-verdade, pós-tudo em companhia do pensador – morto do coração em 2013 – seria levá-lo às portas do Templo de Salomão, a nova Catedral da Fé, no Rebouças. A construção da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) se ergue altíssima, dourada, equipada de heliponto ao lado de cúpulas, esparramada em 16 mil metros quadrados, qual um pequeno reinado. A arquitetura solene apaga tudo ao seu redor – mais até do que fez anos atrás o Palladium, que sepultou a mais antiga paisagem operária da capital, uma vez tão poética, debaixo do nome de Novo Mundo. Pois é – doeu.
É provável que Berman não se fiasse em chamar o templo de feio ou bonito, pois esse não era do seu ofício. Haveria de se interessar era mesmo pelo Rebouças, tal e qual costuma acontecer com os urbanistas e pensadores de cidades em geral, assim que botam os olhos naquela redondeza cinza, úmida e genial. Ninguém com um mínimo de ciência boceja diante da zona ferroviária e industrial por onde, em tempos idos, circulou a riqueza paranaense. Motivos para tanto deslumbre, de penca. Todos impasses urbanos do nosso tempo se concentram ali, e podem ser decifrados nos paralelepípedos das ruas Santo Antônio e Piquiri. Permitam afirmar que quem lê o Rebouças, lê Joyce, lê Proust, lê o mundo.
Como costuma declarar a filósofa Olgário Matos, há pontos da cidade que escondem seu passado, oferecem uma epifania no virar da esquina. À exceção dos velozes e furiosos que circulam cegos pela João Negrão, Engenheiros Rebouças e Chile, os demais – o que inclui os distraídos –, torcem o pescoço diante do moinho onde hoje está a Fundação Cultural; da fábrica de fósforos Swedish Match, que bem merecia uma visita do Tim Burton; ou do “Estação” – imerso no seu mix de ficção, arquitetura kitsch e realidade. Nesse sentido, o templo da Iurd destoa, mas também combina com o Rebouças, esse território bipolar, passadista e decadente que oscila entre ser parque temático e sítio arqueológico. Pelo andar da carruagem, dizem, em breve será apenas um registro nostálgico no Boletim da Casa Romário Martins. Ilusões perdidas.
A propósito, alguém com pachorra bem podia mapear todos os projetos que ambicionaram a “tomada do Rebouças”, tamanho fetiche provoca. A primeira tentativa teria sido com o Plano Diretor de 1965, sem sucesso. A criação da Cidade Industrial de Curitiba (CIC), em 1973, provocou abalos, mas uma parte do bairro se negou a mudar de endereço. Nas décadas seguintes, a região viu sumir parte de sua classe média, que morava perto dos negócios, mas tinha atração irresistível pelo Jardim Social. Perdeu população. Empobreceu-se. A indústria ficou reduzida a 8,8% da área. A região virou lugar de passagem para a extensa Zona Sul. Hoje tem quase 15 mil habitantes, sendo 84% deles brancos de neve, 75% moradores de prédios, motoristas de 22 mil automóveis. Ah, quase 16% dos inquilinos daqueles rincões são vovôs.
Nos anos 2000, vieram a residências culturais – uma tentativa frustrada de que artistas levassem para lá seus ateliês, artesão erguessem cooperativas, coisa e tal. O projeto SoHo Rebouças veio na rabeira, permitiu decibéis mais altos nos bares, mas a área estava underground além da conta para o paladar da classe média, empenhada em tolerar as travestis numa conversa entre pares, mas não na quadra que escolheu para o happy hour. Depois veio o anúncio de um Tecnoparque – e a crença de que as faculdades e universidades plantadas por lá poderiam levar oxigênio às ruelas escuras da antiga zona fabril. Não rolou. Estudantes, como se sabe, andam loucos atrás de emprego – item cada vez mais escasso –, o que lhes rouba horas disponíveis para se entregarem à cidade.
Deve-se reforçar que a prefeitura – em quase todas as gestões – costuma sustentar um novo projeto para o bairro até o ponto em que lhe renda mídia e votos. Nesse sentido, o Rebouças é uma banda numa propaganda de refrigerantes. Boas propostas, saídas de boas cabeças, nunca chegaram à página 2. Neste ano da graça de 2017, sabe-se, rolam por aí novas planilhas contendo as propostas que podem revirar as pedras daquelas ruas, dizem que na unha, se for preciso. Para ajudar, vem aí o novo câmpus da UFPR – no Edifício Teixeira Soares – e, claro, o Templo de Salomão, cujo efeito na malha urbana a Deus pertence. O Rebouças tem mesmo nervos de aço.