José Carlos Fernandes

Onde o Cid dizia palavrão

José Carlos Fernandes
01/02/2019 17:00
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Arte: Felipe Lima

Aconteceu em 1962. O empresário Francisco Cunha Pereira Filho – então com 36 anos e um bem-sucedido advogado criminalista – convocou de chofre os 40 e poucos funcionários da empresa que acabara de adquirir, o tradicional jornal Gazeta do Povo. Tinha algo urgente a lhes dizer – e a pedir. Testemunhas oculares da história, como se dizia naqueles tempos do Repórter Esso, não esquecem o dia em que se viram juntos, essa palavra mágica.
A reunião com toda a tropa aconteceu na sala de impressão. Ninguém teve tempo de trocar o macacão sujo de graxa por uma calça de brim Far-West; ou de passar a escova no sapato Vulcabrás. Repórteres e editores – todos homens, de bigodes, fumantes inveterados e em ternos, como mandava a etiqueta – ficaram lado a lado com tipógrafos, motorista (sim, no singular, pois só havia um: meu pai, José), telefonista, diagramadores e coisa e tal…
Cunha Pereira, em companhia do sócio, o também advogado Edmundo Lemanski, expôs a situação financeira do jornal – capenga, um balança-mas-não-cai, um pega-pra-capar. Os credores batiam à porta. A venda de classificados – pequenos anúncios de geladeiras velhas, bicicletas avariadas e terrenos alagadiços – continuava em alta, mas era insuficiente para cobrir as despesas com pessoal e pagar as apólices da negociação.
A Gazeta, até então, pertencia ao professor Oscar De Plácido e Silva, um mito da imprensa e da editoração. Além do jornal que fundou em 1919, levava seu selo de qualidade a editora Guaíra, ainda hoje inigualável em seus feitos. Tinha entre os autores do casting o norte-americano John dos Passos – para começo de conversa. Mas os tempos de glória do jornal do doutor De Plácido ficariam em definitivo para trás se aquele pequeno exército de Brancaleone, reunido em torno de uma impressora Marinoni caindo de velha, não reagisse.
Cunha Pereira pediu a palavra – e, para quem não sabe, era bom de oratória. Prometeu que aqueles que o ajudassem a salvar a Gazeta do Povo não ficariam desassistidos. E assim o fez, num exercício contínuo de gratidão, mesmo que lhe custasse os rins. A força-tarefa deu resultado. Virou uma lenda o encontro frugal entre a gente humilde que respirava a fumaça do chumbo saída das linotipos e um descendente dos heróis da Lapa, admirado pela elegância, cultura e espírito público (impressiona ainda hoje saber de sua luta pela abertura de escolas noturnas, quando ainda era um jovem estudante de Direito). Sem desdenhar de outros, poucos homens de negócio marcaram de forma tão positiva a trajetória de seus colaboradores.
Uma década depois daquele pedido de socorro, o jornal ostentava fotos coloridas na capa – coisas da terra de gigantes, então –, cadernos especiais e quadruplicou o número de empregados. Mais uma década ainda, a edição dominical chegava a 3,5 quilos, tamanha quantidade de anúncios por página. Em meados dos anos 1980, alcançava a marca de 100 mil exemplares, o equivalente a 500 mil leitores na edição de fim de semana. E se firmava como um jornal dado a campanhas cívicas, como as que garantiriam o pagamento dos royalties em ressarcimento pelas terras férteis alagadas por Itaipu – para citar uma em mais de 30 ações encabeçadas pelo doutor, como o chamavam. Ele retribuía a honraria, dando o título a nós. Saudade.
A propósito, a turma da reunião às pressas, em 1962, estava lá para ver esses feitos. Se perguntassem a qualquer um o que era a Gazeta, diziam sem gaguejar: “Uma família”. Cunha Pereira cumprimentava a todos, queria saber dos filhos, aconselhava parar de fumar e, não raro, quebrava galhos dos desesperados. Seu escritório para ouvir casos extremos? A saída da novena do Perpétuo Socorro, à qual nunca gazeteava.
O modelo empresarial que safou a Gazeta da bancarrota causa urticárias em quem circula nas salas com ar-condicionado do novo mundo corporativo. Mas ninguém pode negar que se trata de uma história porreta de boa. A turma que se sentia à vontade na empresa – afinal, era “quase parente” – não escondia o jeitão, como se estivesse no quintal de casa. Essa intimidade sem filtros fazia do jornal uma galeria de tipos autênticos, vários, à primeira vista, candidatos ao hospício. Os que foram se somando à equipe, anos a fio, repetiam o modelo “aqui posso ser quem sou”. Divertido era pouco.
O próprio Cunha Pereira tirou proveito da comunidade maluca que criou. Chegava a ir à redação da Praça Carlos Gomes, madrugada adentro, de pijamas e roupão, ajudar a desencalhar a impressora que soltava pino, feliz na pele de um peão, longe dos protocolos e de gente chata, sua ojeriza confessa. Sabe-se que adorava andar na Kombi que entregava a edição do dia – na categoria carona. Entre os salões do Clube Curitibano e uma rodada de conversa com a turma de entregadores no barracão, arrisco, ficava com a segunda. Seu velório, em março de 2009, foi dos mais belos dos pinheirais. O grande personagem da Gazeta do Povo em 100 anos? Você responde.
***
É uma operação suicida citar alguns nomes da “turma da Gazeta” – grande, barulhenta e cheia de personalidade. Asseguro que o que segue não chega a 1% do que deveria. Passa pela telefonista Eunice Meira, voz linda, temperamento amável, por cujos ouvidos passavam segredos dignos de confessionário; pela matriarca Jacira Oro do RH, a quem a Gazeta deve uma placa dourada batizando um corredor; pelo Gregório Chuppel, quase um monge, o cara que tirava a rotativa do enguiço; por Dilmar Archegas, que pouco mais do que um menino trabalhou com o advogado Cunha Pereira e chegou a gerente geral do grupo; pelo menino-prodígio Rogério Florenzano, tornado um papa da publicidade no estado; pelo doutor D’Aquino Borges, o negro D’Aquino, que comandava a redação antes mesmo da reunião de 1962. O faz-tudo Clóvis Nascimento – um nobre. Não cabe numa linha, sorry. O mesmo se diga do talentoso editorialista Bacila Neto, dono de um inglês cintilante, um tipo que pensava com a ponta dos dedos e arrancava faíscas das máquinas de escrever Olivetti. Seus textos, longe dos fatos cotidianos que o originaram, hoje merecem ser lidos como peças literárias. Essa galeria é uma lenha.
Ao lado de um aristocrático Bacila e do feliniano D’Aquino, passava a turma que garantia no muque o jornal nas bancas. Quase todos tinham apelidos, dos ligados à fauna, como Ganso e Sabiá, Jacaré e Mico; os atualíssimos, como Espingarda; culminando nos anedóticos Salame, Babão, Sapatão e Cadelinha (sic). A chance da ganhar um segundo nome era de 8 em 10. E muitos, ao resistir à brincadeira, o tinham sem saber, pobres inocentes. Algumas dessas identidades secretas iam parar na porta do banheiro, uma tribuna livre da maledicência. Pudera. Os longos serões para driblar as agruras da tipografia – onde a lei de Murphy imperava – traziam tanta proximidade e tensão que brincar era o melhor remédio.
Penso que não havia jornada sem que alguém pedisse desculpas a alguém, por um destempero taurino qualquer. “Desculpe aí…” Os atrasos da redação e das agências de propaganda mexiam com nervos e coração: no início da manhã o jornal tinha de estar à mão do leitor, ao lado do pão e do leite, como se dizia. NQM (nem-que-morra, eis o jargão).
Dentre tantos que por lá passaram, a coceira é estacionar no fotógrafo Cid Deren Destefani (1936-2015). Nos tempos em que a Gazeta juntava os caraminguás para pagar as contas, Cid fazia carreira em outras paragens. Chegou ao jornal em 1989, já consagrado como o cara que tinha salvado uma pá de acervos fotográficos da máquina de picotar. Sua coleção ultrapassou o portento de 500 mil imagens. A página que assinava, a Nostalgia, se tornou um êxito editorial comparado apenas à marca Viver Bem – caderno dominical de variedades criado pela jornalista Nereide Michel, nos anos 1980; ou ao espaço do colunista social Dino Almeida, por décadas o que havia de mais bacana na sisuda Gazeta, vocacionada às grande causas, mas cronicamente tímida em termos de abraços no leitor. Pois é. Jornais são como pessoas – e a Gazeta é assim.
Cid era uma figura. Uma prova da liberdade de expressão no circuito interno gazetiano. Certa feita se estranhou com uma zeladora, que cantava músicas religiosas enquanto ele se concentrava em notícias antigas, para ilustrar a edição da semana. Soltou-lhe os cachorros, bem à moda. Ela se vingou com as armas que tinha. Espalhou pelo jornal todo que, quanto cantava, atiçava um dos mil demônios do fotógrafo. Como sabia? Pelos palavrões que soltava.
O episódio ajudou a lidar com o gênio intempestivo de Destefani. Exigia traquejo. E justiça seja feita, depois das duas da tarde o fotógrafo se tornava 25% mais cordial e divertido. Era um notívago, o que explica muita coisa. “Viu o Cid?” – “Está lá embaixo, no arquivo, hoje só com 150 demônios. Pode chegar.” Deixou um vazio. Poucos foram tão pontuais e receberam tão raras correções ao trabalho quanto ele. Amava a Gazeta, penso, sobretudo, porque ali podia ser quem era – um mal humorado incurável, gamado no passado.
Certa ocasião, sabendo que éramos amigos, me perguntaram se ele toparia dar entrevista sobre transtorno de humor. Tremi na base, mas passei o telefone, com a recomendação que ligasse fora do horário de risco, depois das 14 horas. O repórter ignorou o pedido. Naquela noite, ao passar na rua em que moro, Cid me esperava. Gritou da calçada, na porta do Bek’s bar, onde despachava: “Quem é que é mal-humorado, seu fdp?”.
Com todo respeito à santa mãezinha, ri muito e agradeci aos deuses do travesseiro poder ter um colega de profissão como ele. E também tantos outros, em nada pasteurizados. Cito o lúdico Aloar Ribeiro – repórter esportivo capaz de repetir a escalação do Vila Fanny em 1955; a primeira mulher registrada em um jornal, Rosy de Sá Cardoso, viajante de 87 países e amor de uma vida; o gênio editor Edson Luiz Fonseca – nosso Google dos tempos pré-web; o diagramador Carlos Estevan, o Carlinhos. Paro aqui para não chorar.
Carlinhos desenhava páginas de óculos escuros e com cara de poucos amigos. Tinha o rosto muito vermelho e castigado pelas espinhas. O chinelo pendurado no dedão do pé. Se mudássemos de ideia quanto à colocação das fotos, amassava o diagrama sem dó e o atirava à lata, como se fosse uma dinamite. Não poupava nem a Ana Amélia Filizola, filha do patrão Cunha Pereira, a jornalista que preparou a Gazeta para os anos 2000. Suspeito que Ana entendeu a regra do jogo naquela redação fora da curva: se dobrasse o Carlinhos, ganharia o futuro. Dobrou.
P.S. Perdão, faltou falar da linda e temperamental secretária Vera Borges. De editora Clarice de Alda botando respeito em tempos machistas. Da jornalista Marisa Valério cantando para a gente durante o fechamento. Do Juvenal Ferreira, o impressor. Da manhã em que a designer Joana dos Anjos chegou à redação – e caímos todos de amores. Volto para contar.