José Carlos Fernandes

Os iconoclastas estão chegando

José Carlos Fernandes
01/03/2020 19:00
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O desfile das grandes
escolas de samba do Rio de Janeiro deixou um grito parado no ar. O que houve?
Esperava-se pencas de situações de protesto contra políticos e navalhadas de crítica
social – expectativas reduzidas à poeira algo panfletária de uma pálida e
azarada União da Ilha do Governador e à São Clemente, com folga a mais abusada
da edição 2020. Mesmo a Mangueira – cujo enredo é de uma simples e convulsiva
beleza, ao contar a história mais conhecida do mundo, a vida de Jesus – esteve
longe do pega-pra-capar contra a babaquice, como se havia anunciado. Foi clássica
e elegante como uma dama que faz a feira.
O bordão “não tem
futuro sem partilha, nem messias de arma na mão”, e a crucifixão de um
adolescente negro e pobre – expressa numa alegoria altíssima – abriu a ferida,
mas o drama da desigualdade não se sobrepôs ao barroquismo das alegorias e à
perfeição quase asséptica do desfile. O resultado ficou um bocado aquém do
espírito carismático da verde-e-rosa – reflexo, talvez, de tempos difíceis,
movidos por paixões tristes, uma peste que assola meio mundo. A analogia entre
o Jesus histórico e a realidade do século 21 se deu de forma previsível, uma
versão luxuosa de temas debatidos pelo grupo de jovens da paróquia.
No lugar da política e das mazelas sociais – em especial a pobreza e a violência –, o imperativo nos desfiles foi a religião. Tudo leva a crer que, numa sociologia momesca, é na relação tensa com os cultos que os disparates brasileiros mostram sua face mais medonha, sem disfarces. Um balanço ligeiro nos enredos confirma que o que mais se pediu na avenida foi tolerância à fé dos outros, um solene “basta” ao autoritarismo dogmático, ao controle descarado do fiofó alheio. O carnaval lançou, inclusive, um bordão, a ser repetido nos próximos meses: “Eu respeito seu amém, você respeita meu axé”, saído do enredo da Grande Rio, escola que homenageou o pai de santo Joãozinho da Gomeia. A agremiação saiu do certame como uma das favoritas.
Está cada dia mais difícil entender o que se passa na cabeça dos cachorros, mas sobretudo o que se passa na cabeça dos brasileiros
Faz sentido. O saldo de
2019 no quesito “intolerância religiosa” arranhou a imagem de país aberto à
liberdade de culto, de expressão, dado ao humor e o que mais a gente achava que
tinha como banana, “para dar e vender”. Não passou mês sem que o noticiário
mostrasse terreiros destruídos, depredação de esculturas públicas devotadas a
entidades da umbanda e do candomblé, desejo obsessivo de governar – com
equipamentos públicos educacionais, inclusive – o comportamento e a natureza
dos outros. O “em nome de Deus” calou tão forte que muitos brasileiros se viram
às voltas com um clima inquisitorial, que outra coisa não promoveu senão o
ódio, instalando a mais estranha das contradições. Poxa, cuspir e bater movido
pelo amor divino? Não cola. Na esteira dessa fogueira, vieram outras tão
ardentes quanto, a exemplo da perseguição a artistas e produtores culturais –
tragédia que pede discussão à parte.
Como dizia Tom Jobim,
“o Brasil não é para iniciantes”. Está cada dia mais difícil entender o que se
passa na cabeça dos cachorros, mas sobretudo o que se passa na cabeça dos
brasileiros. Exemplo da nossa metamorfose ambulante? Em 1989, uma alegoria que
reproduzia o Cristo Redentor foi barrada por autoridades e teve de entrar na
Marquês de Sapucaí coberta em plástico preto, com os dizeres “mesmo proibido,
olhai por nós”. O enredo, “Ratos e urubus, rasguem minha fantasia”, era de
Joãosinho Trinta, pela Beija Flor, e marcou época. O desfile, quase um transe
surreal, em que o lixo deu lugar ao luxo, se converteu num dos capítulos mais
surpreendentes da história do carnaval. Comparando, o carnavalesco Leandro
Vieira, da Mangueira, teve bem mais sorte que Trinta à época. Mesmo debaixo de
críticas do próprio presidente da República, o esteta da Mangueira povoou a
avenida de imagens de Cristo no feminino, em negro, em índio, crucifixos e ícones
da Virgem Maria, tudo sem enfrentar a censura. Não lhe impuseram lona preta, não
lhe bateram à cara, alegando banalização de imagens sacras.
Ué? Mesmo sem barrar o Jesus Menino Crucificado da Mangueira, o Brasil de 2020 se mostra bem mais reacionário em termos religiosos do que aquele do fim dos anos 1980. Há vários marcos nessa balada triste. Daqui a duas-três décadas, quando olharmos para trás, haveremos de deduzir que houve um divisor de águas nessa trama e que atende pelo nome de “especial de Natal do Porta dos Fundos”. Como se dizia, é um “ponto nevrálgico”. Tornou-se assunto discutido à exaustão, com razões dos dois lados, mas vale a pena relacionar esse episódio com o empenho dos carnavalescos em defender as religiões, digamos, mais heterodoxas. Aos fatos.
No carnaval, via de
regra, a mensagem de “consideração” é simples e direta como um slogan publicitário.
Na avenida, o apelo de baterias e passistas é para provocar o engajamento
imediato da plateia. A linguagem tem de funcionar para milhares que assistem ao
chamado “maior espetáculo da Terra”, um evento que ocorre em clima de ópera
popular. Cada refrão em prol da liberdade religiosa, portanto, ganhou tintas de
manifesto. Mas a questão em si é de uma complexidade absurda, tarefa para um
milheiro de sábios e monges, para pilhas de tratados. O Jesus de Gregório
Duvivier pede uma tese. Ou duas.
Eu, você, todo mundo, pelo visto, encontrou pelo menos uma pessoa inflexível à brincadeira do Porta dos Fundos. O curta perverteu, de forma iconoclasta – linguagem legítima e necessária –, uma passagem específica da vida de Jesus: a rotina imediata após seu exílio no deserto, pouco antes de se entregar ao rabinato e abraçar a Paixão. Causou? Se cada um dos descontentes com a sátira atirasse uma bomba à produtora do programa, teríamos a antessala do Final dos Tempos. Nunca é demais dizer que é assim que começa a loucura religiosa, de todas a que mais acende fogueiras. A religião é de uma força absurda, o fraco e o forte dos seus praticantes. O tal do “salto da fé”, expressão já pálida de tanto ser usada, serve para lembrar que todas as religiões desafiam a ciência e a racionalidade. É seu barato, mas nem sempre o que se vê é uma dimensão mística. O “salto” pode sinalizar também uma desculpa para fazer uso da “verdade” religiosa como se fosse um gatilho, um recurso demoníaco, capaz de trazer à tona as piores sombras. Em resumo, a mão que afaga é também a que afoga.
Mesmo sem barrar o Jesus Menino Crucificado da Mangueira, o Brasil de 2020 se mostra bem mais reacionário em termos religiosos do que aquele do fim dos anos 1980
De minha parte, sou
partidário de que é preciso desconstruir a máxima de que gosto, time de futebol
e religião não se discutem. A religião está ocupando o lugar do pensamento e
isso se chama preguiça. Cheguei a propagar, entre os meus, que agora sou devoto
do Bom Jesus da Porta dos Fundos, protetor da liberdade de expressão. E já o
invoco tanto quanto rezo “Salve Rainha”. Permitam uma analogia. O gosto é
formado, não raro em meio a espartilhos que pouco têm a ver com a fruição
cultural. Pode-se calibrar essa relação, com o que os antigos chamavam de “vida
do espírito”. Podemos passar dos blockbusters
chulés, televisivos, para filmes de arte, que explorem as sutilezas das
misérias humanas, por exemplo. Do mesmo modo, é possível saltar de uma fé
ingênua – como classificava o teólogo jesuíta e filósofo João Batista Libânio (1932-2014)
– para uma fé que se calque não apenas na devoção, mas também nos estudos, na
clarividência, que não reduza a crianças amuadas, dadas a muxoxos. O Brasil, a
propósito, é carente de teólogos – e não me refiro a padres, pastores ou
religiosas, mas a cidadãos comuns, ocupados dessa grande área do conhecimento.
Haveria mais discussão sobre as religiões – que estão longe de ser intocáveis –
sanando sobremaneira a atrofia intelectual da vida brasileira nesse quesito.
Religião se discute, sim, pois tudo o que é humano está encapsulado ali.
Muitos gritaram contra o especial do humorístico Porta dos Fundos – alegando se tratar de uma heresia, que com religião não se mexe, que tinha de proibir. Ledo engano. É de fato um bocado inútil discutir dogmas, pois são o cerne das religiões, mas, de resto, uma fé que não seja minimamente infantil há de entender inclusive o papel do humor. Ao tirar graça de situações ditas sacras, os humoristas colaboram para que os sistemas de crenças se livrem dos penduricalhos, atendo-se ao essencial. Foi o que fizeram todas as crises iconoclastas que atravessam a história, de forma imemorial. Foi o que fez a Mangueira, ao afirmar um Jesus que nasceu pobre, marginalizado, um rei no lombo de um burro. A escola – sem entrar nos méritos da competição – tratou do que não pode ser negligenciado. O mesmo fez a Grande Rio. São discursos simplistas? Pois, como todo mundo diz – inclusive o estilista –, “o simples é mais difícil”. É do que precisamos para não nos perder, retomando o fio da meada. O carnaval, quem diria, restabeleceu a moralidade. Tomara.