José Carlos Fernandes

Os jornais nos tornam ricos

José Carlos Fernandes
10/02/2019 20:00
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Arte: Felipe Lima

Domingo passado, a Gazeta do Povo completou 100 anos de circulação ininterrupta. Poucos diários brasileiros chegaram a esta marca – o que confirma a jovialidade crônica da nossa democracia. É bom lembrar que, à exceção do El País, fundado em 1976, a maioria dos jornais de fato influentes no planeta ultrapassaram um século de atividades. O tempo só lhes faz bem. Não tê-los só nos faz mal.
Tais empresas sobreviveram a crises econômicas, golpes de Estado, catástrofes, guerras, boicotes corporativistas e a mesquinharias de herdeiros – entre outras provas de fogo cujo saldo é a moeda da credibilidade. Bons jornais fazem parte da riqueza das nações. Repito, sem pudores, a frase do pesquisador Paul Starr, da Universidade de Princeton: “Não existe cidade próspera e interessante no mundo que não tenha um jornal forte em circulação”. É uma boa régua – em especial nesse momento sinistro em que a autoridade moral do jornalismo está na mira da esquisitice premiada. Os que negam imprensa livre – ou a querem no cabresto, como se fosse o informativo da paróquia – outra coisa não fazem senão reivindicar a sombra da irrelevância. Tristeza do Jeca.
É um porre ter de esgoelar a importância óbvia da imprensa. Dá dores de cabeça lancinantes assistir à vitória acachapante da parentada que manda notícia falsa e alarmes sensacionalistas pelo WhatsApp. Reagir exige muita categoria, a exemplo do que mostrou a última campanha publicitária do jornal Washington Post. A peça em vídeo lembra quem é que está a postos na hora em que a terra treme. Lava a alma.
Permitam citar uma ideia – da qual não recordo o autor, mas que costumava ser repetida pelo ensaísta e crítico literário Wilson Martins (1921-2010). O Brasil chegou à modernidade sem passar pela civilização. Na versão corte seco de Martins, “passou do carro de bois para o automóvel”. Sem escalas. Como toda frase de efeito, merece ressalvas. O Brasil, como dizia Tom Jobim, “não é para principiantes”, daí a impossibilidade de sermos explicados por ditados, mesmo que fossem escritos por Oscar Wilde. Mas cá entre nós, faz algum sentido. Pulamos alguma etapa do processo civilizatório, erramos alguma conta, alguém congelou nossos miolos, trancaram a gente no porão… Do contrário, não temos como explicar o show de calouros dos últimos dois meses – e a passividade bovina com a qual o toleramos.
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A baixa leitura de jornais figura entre as cascas de banana da nossa formação. A vida pública exige intimidade com a notícia e com sua cozinha. Não tem choro – é uma estiva para quem produz, uma tarefa para quem lê. E é melhor morder a língua antes de gritar que o passa-fora na notícia é um fenômeno mundial. Necas. Nosso calção está a meia bunda, mais que o dos outros.
À revelia de toda a pirotecnia em torno da audiência na internet, o brasileiro acompanha a imprensa de maneira medonha. Basta pegar nossos índices e compará-los com os de outros países. A gente não perde de lavada apenas para o Japão, onde a edição vespertina do Asahi Shimbun deve superar a tiragem diária de todos os jornais brasileiros. Apanhamos também de uns tantos vizinhos latino-americanos, a quem não raro devotamos ignorância supina. Tomamos um olé dos Estados Unidos, país tão grande e complexo quanto o Brasil, e que está para muito além da figura do caipira de camisa listrada, que amassa latinhas na frente da tevê, tem ódio dos mexicanos que lhe servem à mesa e acredita que Trump é um estadista. Pois há mais gente lendo jornal nos EUA do que assistindo ao Super Bowl.
Há, paralelo, outro indicador de que nos damos às turras com a imprensa, sem medir consequências desse descaso (desprezar a apuração como método e não ter pudores de papagaiar informações falsas, para citar duas): nosso país tem poucas biografias de jornais, justo por não considerá-los. De novo, as comparações odiosas. Na França, apenas o Le Monde, um jornal novinho, surgido em 1944, soma três biografias. O Reino e o poder, de Gay Talese, sobre o The New York Times, é manjar dos deuses. Por aí toca a banda.
Os mais esclarecidos podem argumentar a existência de uma dúzia e meia de livros sobre as nascentes da imprensa brasileira. Há de fato títulos modelares de Nelson Werneck Sodré, Isabel Lustosa, Mônica Pimenta Velloso e Marialva Barbosa. Além da soberba pesquisa do historiador e jornalista espanhol Matías Molina – depois de Os melhores jornais do mundo, ele lançou o primeiro volume de História dos jornais no Brasil. Ambos exploram a personalidade dos periódicos, mostrando-os como pessoas que falham, que imprimem caráter, que mudam de pele. Dou garantia ou seu dinheiro de volta: os textos de Matias são tão gostosos de ler quanto os de Elena de Ferrante.
Com folga podemos afirmar que o jornal Última Hora, de Samuel Wainer; o nanico Pasquim; as revistas Cruzeiro e Realidade figuram entre os veículos nacionais que mais receberam bons estudos. Dentre os que começam a ser analisados com brilho estão os jornais Folha de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo. Sem falar no infame Notícias populares, finado em 2001, cuja existência causa espanto na moçada boa praça de hoje em dia. A turma fica impactada ao saber de coberturas sobre o Bebê Diabo e das aparições da Loira do Banheiro (sem falar na miséria que fazia com as mulheres, travestis e pobres em geral). Penso no que o NP faria com a tramoia da tal mamadeira, cuja existência rivaliza com o Saci Pererê.
Mas melhor não se iludir. O que se tem publicado ainda é pouco. Calcule: cada edição de um jornal equivale a um livro bem fornido, desses que ficam em pé na mesa. Imagine a soma de uma semana. Um mês. Um ano. É uma barbaridade o que há ali sobre política, comportamento, cidades, violência, consumo e – claro – vida zodiacal e alguma bobagem. Multiplique-se tudo isso por décadas e cada veículo se torna uma biblioteca universal da humanidade. Não é bolinho.
Há dez anos, em parceria com o jornalista e escritor Marcio Renato dos Santos, tive a oportunidade de assinar o livro Todo dia nunca é igual, sobre os então 90 anos da Gazeta do Povo. Trata-se de um texto de circulação dirigida. É imperfeito, desigual, escrito em tom de crônica, valorizado pelo trabalho do designer Lucio Barbeiro e pela pesquisa da historiadora Fernanda Leitóles. Nasceu de uma atividade simples e prazerosa – a leitura de todas as edições da Gazeta, sem pular uma página, para dali extrair o que ensinou Molina – a personalidade desse jornal.
Recomendo a experiência de ler jornal velho. No tempo passado, crimes e crises se tornam inofensivos. É um barato total o contato com os classificados – espaços para vender bicicletas avariadas e terrenos alagadiços. Parece mentira o anúncio em que alguém informa ter perdido um anel na matinê do Thalia – e dá o endereço em que poderia ser devolvido. Ou o de um vizinho que reclamava da vaca que andava solta na Rua Doutor Faivre. Vacas na esquina foram problema grande por aqui, assim como o sovaco dos choferes de táxi. Mereceu um editorial. Creiam.
Até os famosos tijolinhos – pequenos informes com a programação de cinema – renderiam um livro à parte, tamanha riqueza. Sabe-se por eles que Os Cafajestes, de Ruy Guerra, filme que ostentou o primeiro nu frontal do cinema brasileiro, fez boa carreira na carrancuda Curitiba de 1962, ao contrário do ocorrido nas demais cidades, nas quais foi alvo de protestos histéricos. Leitura de jornal é assim – confirma, mas também desmente o que a gente jura que sabe. Some-se a fina das estrelinhas, nas quais os jornais costumam ser pródigos, para driblar a censura interna e os leitores doidos varridos.
Um caso que lembro é o de um crime envolvendo dois homens da classe média local, em meados dos anos 1960. Um policial, outro comerciante. Sem poder informar que eram amantes, os carrapichos, como costumavam ser chamados os repórteres policiais, se referiam aos dois, sempre entre aspas, como “muito amigos”. Risível, porém triste.
Saí da empreitada do livro com algumas premissas. Valem para a Gazeta e, presumo, para boa parte dos jornais regionais. Eventos como a campanha Diretas Já (1984) e o Collorgate (1992) aumentaram sobremaneira a capacidade investigativa da imprensa, salvando-a da preguiça dos repórteres que faziam ronda na Praça Rui Barbosa, e só. Depois disso, a tolerância com impressionismos ficou bem menor. O jornalismo perdeu um bocado daquele romantismo de minissérie da Globo, mas ganhou em capacidade de interferir na sociedade.
Os jornais, que pareciam andar dez passos atrás dos grandes debates públicos – como o direito à habitação, a violência endêmica, a igualdade feminina e o combate à pobreza –, abandonam expressões como “vadia”, “decaída” e “amásia”, e sepultam discursos higienistas. Trazem mais vozes e menos editoriais raivosos. Civilizam-se. Querem tocar o cotidiano do leitor, como se o convidassem para estar em roda da fogueira. Por essas e outras, jornais são humanos demais para serem esquecidos ou substituídos por qualquer joça. Ou pelo menos assim deveria ser.