José Carlos Fernandes

Os narradores e a revolução das borboletas

José Carlos Fernandes
19/07/2020 11:00
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Arte: Felipe Lima

Um primo médico – grande
médico, aliás – me confidenciou seu desânimo com estudantes de Medicina, a ele
confiados certa ocasião. Procurava, suspeito, uma iluminação em alguém próximo,
que soma mais de 20 anos de magistério superior – mal calculando que estou
submerso na treva socrática: “Só sei que nada sei”. Quanto mais o tempo passa –
a não ser que não tenhamos um mínimo de juízo – mais tolinhas são as certezas,
e não o contrário, como seria de se esperar. Vá entender. Em todo caso, a
conversa girou em torno da desconfiança metódica que os jovens parecem exibir
diante dos mais velhos. A expressão “tem no Google”, estampada nas testas lisas
e coradas, é uma surra – com cinta dobrada – para os professores.
Explico ao primo que, do
ponto de vista de alguém que apostou todas as fichas no estudo de artes,
literatura, filosofia e comunicação, o fenômeno tem explicações. Algumas bem
rasteiras. Demos à moçada um mundo violento, sem emprego, poluído, no qual a
vida sexual pode representar contaminação pelo HIV, e, agora, pandêmico. O que
mais? Uma sociedade difícil de explicar – o que gera um cansaço de estiva. Em
resposta, a turminha se vinga bonito da gente: deve andar “pê” de ouvir dos
adultos que lhes falta essa ou aquela referência para conseguirem entender o
que nós, na verdade, também não entendemos. E farta de aturar a sacanagem,
repetida à exaustão, de que a vida foi bacana “um dia”, mas já passou. Sobraram
migalhas. Nada mais natural que tratem com desconfiança quem lhes deu essa
herança. Os jovens estão se defendendo – por isso, atacam.
A prosa não para por aí.
Recorro ao filósofo francês Gilles Lipovetsky e ao pesquisador brasileiro Ciro
Marcondes Filho para classificar o suposto desdém juvenil como um sintoma da
chamada “crise do narrador”. O professor, o líder religioso, o irmão mais velho,
o bambam do grupo de jovens, o colega que estava há mais tempo na firma, sei
lá, perderam o posto de autoridade instantânea em cultura, política, história,
negócios... Éramos iniciados nos segredos da existência pelos livros, por
certo, mas sobretudo pelas pessoas que nos encurtavam caminhos, indicando setas
por onde seguir – percurso mais do que comum em sociedade em que a transmissão
oral dos conhecimentos ainda imperava. O método podia dar ruim, encontrou sua
versão diabólica na febre da selva chamada “whatsapp da tia”, mas também podia
representar um salto na escuridão. Experimente listar os “narradores” de
sentido que você encontrou estrada afora. Aquelas pessoas a quem você
agradeceria a palavra dada. É um exercício e tanto.
Os gurus do cotidiano continuam
existindo – mas agora estão nos sites, nos blogs ou em qualquer outro
microcosmo em que gente que pensa igual se agrupa. Gostam dos mesmos filmes.
Ouvem a mesma música. Comem o mesmo rabanete. Eis a diferença. É ali, nessas sociedades
em miniatura – ilhas no oceano da internet – que se formam os consensos e as
peculiaridades, pois o grande barato não é mais ser igual, que pena, mas
diferente. A sala de aula, tão parecida às salas de aula do século 19, leva
porrada nessa nova política de transmissão de saberes. Virou um lugar
enfadonho, digno do bocejo eterno. Dói ver a moçada atirada sobre suas
mochilas, como soldados abatidos no Vietnã, enquanto os slides se sucedem. Depois
os enviaremos por email. E fim.
Não só a sala de aula
ficou chata pra c**. As artes seguem a toada da “crise do narrador”. Sabe
aquele escritor que descortinou o sentido de estar circulando por essas ruas
esburacadas chamada existência? Ou a falta de sentido? Pois é, cadê? Cazuza, cujos
30 anos de morte choramos esses dias, cantou “nossos heróis morreram de
overdose”, sentença que resume a fatalidade que ronda aqueles que fizeram
cabeças nas últimas gerações. Foram-se jovens e se tornaram “belos cadáveres”, tal
e qual a frase mórbida que encontrou sua melhor tradução no rebelde sem causa James
Dean.
É trágico. Cazuza emula a
ideia de que artistas são irremediavelmente seres que não se sentem convidados
para o tempo em que estão. Perus de fora. É como uma maldição, que abraçam, pagam
caro, mas ganham a eternidade, em consolo. É um mantra. Do artista se espera
que seja sempre do contra. Que coloque poesia onde impera a burrice
autoritária. Que dance quando os babacas empunham armas. Que conte histórias
mirabolantes para desmentir as versões oficiais. Que se vista para ultrajar. Em
momentos de grande tormenta política, os artistas florescem como salvadores...
Mas do mesmo modo que os professores, ou qualquer pessoa que já tenho pagado mais
pedágios do que devia, se tornaram narradores com aposentadoria compulsória
declarada. Peço aos deuses que eu esteja errado.
**
Certa ocasião, numa feira
do livro realizada no Rio de Janeiro, o escritor João Ubaldo Ribeiro enfrentou
o som e a fúria de um grupo de jovens da periferia. Eles vociferaram contra a
classe artística, acusando-a de ser uma voz encardida, ou algo do gênero. Por
que escritores – como o próprio Ubaldo, consagrado por Viva o povo brasileiro, Sargento Getúlio e O sorriso do lagarto – não se arvoravam em escrever sobre a miséria
dos subúrbios, expostos à precarização urbanística, aos desmandos policiais e a
outros infernos – como a condução que demora mais de uma hora para chegar?
Para tornar mais
enfáticas suas teses de que arte de verdade é arte engajada, os militantes
recorreram à longa noite do regime militar, para dizer que nos 21 anos em que a
gente não pôde votar para presidente, cantores, escritores, pintores e atores
de teatro ergueram sua arte contra o sequestro da democracia. Pois os artistas de
então deviam fazer o mesmo – para botar freio na violência, no desemprego e na
pobreza. Para isso existiam – estetas a serviço do ativismo.
Ubaldo – então já às
voltas com a depressão profunda que o mataria – ouviu tudo com nobreza e
empostou sua voz de ressaca para responder. “Quero o direito de escrever sobre
as borboletas”. Foi seu manifesto. Prosseguiu explicando que durante a
ditadura, escritores e intelectuais abriram mão de seus planos criativos para
botar para correr o autoritarismo. Até porque os mais autorizados à tarefa
estavam no exílio, ou presos. Mas aquilo era passado. Abdicou ali, em público,
da incumbência de ser um narrador moral, um narrador político-partidário, um
narrador-intérprete. Preferia ser um narrador-livre-de-obrigações, pois isso o
fazia artista.
Claro, a fala de João
Ubaldo Ribeiro não arrancaria aplausos numa assembleia de marxistas. Seu
ideário era o da arte pela arte, um buraco fundo que, na opinião de muitos, faz
com que os artistas não sejam levados a sério. Não participam de governos. De
reitorias de universidades. De comissões científicas. Da ONU. Os riscos de
isolamento imposto aos que se posicionam como avis rara, aliás, é um alerta expresso de um pensador como o britânico
Terry Eagleton. Sim, ele crê no poder político da arte e agora é que são elas.
Digo todas essas coisas,
caro leitor, por que as cobranças de posicionamento recaem feito bombas sobre
os artistas. Carregam um urso às costas – justo no momento em que a crise econômica
os atingiu sem dó. É o grupo mais prejudicado e, com folga, aquele que mais
tarde será socorrido. Leio o que escreveu Fernanda Torres a respeito – ela
indaga o porquê de os artistas brasileiros não conseguirem formar uma frente
ampla em defesa da democracia, tal como em tempos idos. Ou da incapacidade de
serem protagonistas, na construção de um sonho coletivo para o país – andamos
precisando com urgência desse show.
Não é uma palavra cruzada
categoria “fácil”. A sociedade do espetáculo, a indústria do entretenimento – a
terceira maior do mundo, depois da bélica e da automobilística – criaram expedientes
bem mais sofisticados para as artes do que os dos anos 1960-1970. Não vamos
encontrar Chico Buarque ou Caetano Veloso tocando violão de graça numa
assembleia de estudantes, por exemplo. O mercado de artes visuais é um negócio
milionário, que pouco tem a ver com... arte. A cultura tribalizada das redes
não favorece mais a leitura coletiva de um livro convulsivo como Cem anos de solidão, de Gabriel García
Márquez. Ou de escutar Sérgio Sampaio em massa e sair com o bloco na rua. Mais
artistas reivindicam para si o direito de escrever sobre o que quiserem, como
brincou Ubaldo naquele dia. De modo que o sonho coletivo – construído com
poesia – parece mais distante que o fim da pandemia.
Do lugar algo ingênuo do homem comum, permito-me acreditar que os narradores renascem – pois assim tem sido desde Adão e Eva. O professor há de acordar o aluno enfastiado. O artista há de plantar um sonho de sociedade, mesmo que escreva um conto sobre borboletas coloridas que invadiram a Terra, fazendo o dia nascer feliz.