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Ouça um bom conselho
| Foto: Arquivo Gazeta do Povo/Arte: Felipe Lima

Tenho na lembrança uma cena de reportagem. Anos atrás, durante uma imersão numa zona de risco – cujo endereço é prudente preservar –, um morador apontou para uma ruela de dar medo, dessas que abundam nas mais de 200 ocupações irregulares de Curitiba. Disse que não devíamos passar daquela divisa. Era zona proibida. E que apenas uma instituição estava autorizada pelos traficantes a cruzá-la – o conselho tutelar.

Àquela altura, como qualquer jornalista que tenha, um dia, produzido matérias sobre a infância e adolescência em situação vulnerável, acumulava uns tantos perrengues com alguns conselheiros tutelares. Os motivos são comuns a outros colegas de ofício: desconfiança infundada da imprensa séria – a que fazia apuração, e não aquela que solta fogos de artifício diante de câmeras de tevê –; negativas de entrevistas, o que tornava os conselhos menos visíveis e mais injustiçados do que já são; resistência em repassar dados de interesse público; e, o que mais doía, jogos infantis de antipatia com o veículo que a gente representava, o que punha os pequenos mais uma vez no meio do ringue dos adultos.

Em miúdos, era uma lenha fazer apurações urgentes sobre a falta de vagas em centros de educação infantil, os CMEIs; dar manchete a violações de direitos ou fazer barulho para mostrar como as fichas que controlam a evasão e o abandono escolar formavam pilhas na mesa dos conselheiros – em meio ao silêncio criminoso das famílias e das instituições de ensino. Mas não havia embate ocasional com esse ou aquele agente do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que permitisse esquecer que havia centenas de ruelas na cidade em que só eles conseguiam entrar. E que nesses locais havia meninos e meninas à espera de quem os socorresse. O respeito e defesa dos conselheiros tinha de ser superior a eventuais chutes na canela. Eles vão aonde a gente não consegue chegar.

Um dos problemas que mais assola a instituição conselho tutelar é o adoecimento dos próprios conselheiros

Os impasses, claro, serviam para mostrar certas fragilidades dos conselhos na compreensão do papel da imprensa, mas também para um mea culpa. Jornalista quer dados, personagens, faz seu serviço, vira as costas e vai embora. Não temos o ônus de encontrar no mercadinho da vila algum miliciano a quem tivemos de aplicar a lei. Mais. Em geral, nos escapa a rotina dos conselheiros em espaços minúsculos de atendimento, sujeitos a plantões da madrugada, tendo de atender situações que só os fortes podem suportar. Lembro de ouvir de uma conselheira o constrangimento que sofria a cada mãe que chegava, para relatar abuso sofrido por uma filha, sendo que ao lado havia uma penca de outras pessoas que podiam ouvir o relato – audível entre paredes feitas de compensado. Não à toa, um dos problemas que mais assola a instituição conselho tutelar é o adoecimento dos próprios conselheiros. “A gente cuida de todo mundo e não tem quem cuide da gente”, resume Jussara da Silva Gouveia, bacharel em Direito, conselheira tutelar em mais de um mandato.

Não faz muito tempo, o cineasta curitibano Elói Pires Ferreira produziu o piloto de uma série de televisão inspirada no SOS Criança – espécie de vovozinho dos conselhos tutelares. Estava animado com a possibilidade de ocupar espaço na televisão com um assunto relevante, por meio de uma produção nacional nos canais por assinatura. Reuniu conhecidos para degustação do episódio no apartamento da pesquisadora de cinema Solange Stecz, minha mais ilustre vizinha de quarteirão. Findada a projeção, a pergunta que fizemos a Elói era se numa sociedade escapista como a nossa o público teria estômago para acompanhar do sofá tantas sequências de crueldades contra a infância, a exemplo das que tinha recolhido. O projeto descansa numa gaveta. Os conselheiros continuam se levantando da cama todos os dias para enfrentar a negligência de pais, parentes, conhecidos. A vida delas tende a ser realidade demais para a ficção.

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Conheci Jussara da Silva Gouveia numa situação banal de redação de jornal. Tive a honra de, por uns bons tempos, ser vizinho de mesa do jornalista Mauri König, reconhecido nacional e internacionalmente por sua atuação corajosa em prol da infância. Falei que estava arrancando os cabelos para finalizar uma matéria que tinha os conselhos como fonte. Tinha acabado de sair de uma longa jornada profissional no hoje finado Caderno G da Gazeta do Povo e não estava costumado a receber “não” como resposta das fontes. Estava em meio a uma guerra de nervos. Abriu a agenda e passou o fone de duas conselheiras – Eloísa Kulcheski e Jussara Gouveia. Que me apresentasse em nome dele. Foi um legítimo “abre-te Sésamo”.

Os conselheiros continuam se levantando da cama todos os dias para enfrentar a negligência de pais, parentes, conhecidos

Eloísa – hoje em outro projeto de vida – não só mostrou as entranhas dos conselhos como ajudou a produzir matérias sobre um dos espaços mais interessantes de Curitiba, a Vila Nossa Senhora da Luz, primeira Cohab paranaense. A família dela tem ligações históricas com a comunidade, e a comunidade da vila vai muito além do que mostra o cardápio do jornalismo policialesco. Graças à conselheira – falo sem medo –, o conjunto popular mais conhecido das araucárias passou a ser visto como um lugar, no sentido mais humano da palavra.

Quanto a Jussara, o número de seu telefone não parou de bater asas por aí. Sempre que a vejo, peço desculpas por divulgá-lo a estudantes de Jornalismo, colegas de profissão e pesquisadores ocupados do ECA. Ela acha graça. Não à toa, a eterna conselheira – pois mesmo quando está sem mandato é reconhecida como tal – se tornou a presidente de honra da Associação de Conselheiros Tutelares do Paraná, hoje presidida pelo cientista social Márcio Rosa da Silva, de Foz do Iguaçu. Conversar com a dupla é se sentir pequenininho. Sem verbas suficientes ou apoio institucional, cruzam o Paraná para dar formação a conselheiros dos 399 municípios do estado, divididos em uma dezena de regionais. “Devo ser meio louca”, brinca ela, antes de esboçar um alerta: faz o que gosta, e não se sente bem na pele de uma heroína da infância. E aproveita para tricotar sobre conselheiros como Maurina Carvalho, moradora da Vila Torres, e um dos símbolos da resistência do setor. A conversa que puxa é para bons entendedores – Jussara se vê no papel daquela que trabalha para que os conselhos enfrentem os novos desafios, e são muitos, incluindo o suicídio de jovens, mas que continue a promover figuras carismáticas como Maurina. Há muitos e muitas como ela, podem acreditar.

Eis o ponto. Os conselhos são um produto do Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 13 de julho de 1990, que é resultado das lutas do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua – entre outras ações da sociedade organizada. Foi uma baita história e ferve o sangue a cada vez que algum ignorante se ocupa de descartá-la, como se fosse palha que o vento leva. A figura do conselheiro não surgiu de uma canetada, mas de muito debate público. É uma ideia sólida. Mesmo assim, está à mercê de toda sorte de incompreensões – dos populares, que insistem em ameaçar seus filhos, substituindo o conselheiro pela figura do “homem do saco”; passando pelos que teriam obrigações minimamente racionais com o tema, mas insistem em rotular os conselheiros como defensores de quem merecia estar preso antes mesmo de ter um fio de barba na cara. Entre outras barbaridades.

O nível de comparecimento às eleições para conselho tutelar é muito baixo para apoiar aquele homem e aquela mulher que estão lá, onde muitas vezes ninguém se habilita a chegar

Ao lado dessas posições esquizofrênicas, insensíveis e preguiçosas, some-se que os conselhos têm de pular fogueiras todos os dias. À incompreensão das próprias prefeituras – que não raro negam transporte para um agente público que acode uma criança vitimizada na madrugada – some-se os desafios tecnológicos e legais. Para preencher bases de dados e enfrentar os tempos pós-modernos, marcados pela judicialização até do vento, os conselhos tiveram de se profissionalizar. Há prova para poder se candidatar. Ainda que não seja regra, gente descomprometida com a causa da infância, movida por ambições políticas e religiosas, consegue se eleger. Em vez de apagar incêndios, botam é fogo no parquinho.

A queda de braço no interior da instituição – que nunca foi mole – se tornou ainda mais acirrada. “O partido do conselheiro tem de ser a criança e o adolescente”, repetem Jussara e Márcio. “Criança não precisa de polícia, mas de políticas”, acrescenta Jussara, sobre o legítimo papel dos conselheiros – o de trabalhar pela garantia de direitos.

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Dia 6 de outubro é dia de votar no conselho tutelar. O mandato é de quatro anos, passível de reeleição. Serão 50 eleitos em Curitiba. Em nível, o nível de comparecimento às urnas ultrapassa por pouco 20 mil votantes, o que é muito baixo para apoiar aquele homem e aquela mulher que estão lá, onde muitas vezes ninguém se habilita a chegar.

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