José Carlos Fernandes

Padrella, o Sade, o sátiro

José Carlos Fernandes
08/04/2018 21:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Definir Nelson Padrella, 79 anos, exige perícia e cara de pau. O homenzarrão de 1,90 e cacarecos, nascido no Rio de Janeiro, mas criado em Palmeira, nos Campos Gerais, não cabe num rótulo. A dizer. Escreveu uma dezena de livros – e, vale avisar, livros que não passariam pelo índex da Inquisição, caso o setor estivesse na ativa. É pintor de boa cepa, laureado e catalogado. Tem lugar cativo na galeria dos psicodélicos que exploraram a cor, a vertigem e a luxúria em meio à zona cinza da década de 1970. Calcula ter produzido mil obras – parte delas empilhada no seu apartamento do Juvevê. “Ninguém mais quer saber disso”, deduz, sem esboçar amargura.
Mais? Aventurou-se pelo cinema – um de seus parceiros contumazes era o catarinense Sylvio Back (foram parceiros em Lance Maior e em Autorretrato de Bakun), conhecido como inventor do docudrama e não menos talentoso que Padrella na arte de atrair raios. NP, se me permitem, também gravou seu nome no mundo dos quadrinhos: integrou o “núcleo duro” de uma das editoras mais endiabradas de toda a história da imprensa brasileira, a Grafipar. Aquela mesma – a das revistas eróticas que, arrisca, faziam até o cartunista Zéfiro ficar corado. Da época em que fazia HQs de altíssima voltagem sexual guarda um apelido delicioso, o de “marquês de Sade de CWB”. Propaguem.
Escritor, pintor, quadrinista, roteirista… De todos os papéis, talvez o que melhor lhe caiba é o de jornalista – e jornalista cultural, título pelo qual costuma ser lembrado. Falar com ele sobre filmes e livros é um barato total. Sabe aquele longa obscuro? Ele conhece. Soma passagens pelo Diário do Paraná, Correio do Paraná, Gazeta do Povo (na qual publicava a coluna de humor “Barra Pesada”) e Correio de Notícias, empresas às quais reserva algumas de suas melhores histórias de sátiro. Nada fica no lugar quando dá de debulhar memórias de repórter. Nelson Padrella, em resumo, é um iconoclasta inclemente e debochado, o que confirma com suas próprias palavras. “Eu? Eu sou um franco-atirador. Um velho aposentado que escreve sacanagens.”
Há pouco mais de uma semana, o artista saiu da toca e lançou um novo romance – O menino. É um catatau. Soma 472 páginas e foi publicado pela editora portuguesa Chiado – uma casa imodesta, de repertório, com representações espalhadas por 13 países. A internacionalização do nosso bufão de Palmeira não é a única novidade deste atribulado mês de abril. O livro bem poderia merecer um rodapé no Guinness: levou exatos 60 anos para ser concluído.
O menino começou a ser escrito em 1957, quando NP tinha 19 anos. Lembra bem o que lhe deu na telha – saía de uma leitura apaixonada de O ateneu, o clássico de Raul Pompeia. Pensou fazer algo parecido, “só que não”, como é de costume em sua biografia tonitruante. O rascunho passou longas temporadas em gavetas, nas quais sobreviveu a mudanças de endereço e de humores do proprietário. Sobreviveu sobretudo à década em que Padrella produziu literatura pornô chique para a Grafipar. Não havia tema tabu. O texto ficou pronto em 2017 – depois de uma vida. Resultou uma saborosa colcha de retalhos, com parte dos capítulos escritos à mão, mania que mantém ainda hoje. Diz ele que é sua resposta à tirania do computador, ao qual reserva os mais sonoros impropérios, desses que nem as torcidas organizadas conhecem o significado.
Padrella reconhece que podia ter deixado O menino para lá, mas um defeito de fabricação não permitiu: o autor é um teimoso incorrigível, cuja fleuma resiste a qualquer dose mínima de Prozacs. Jamais deixaria um serviço pelo caminho, mesmo com brutal atraso no fechamento. Sem dizer que o livro – embora a trama se passe em Palmeira – lhe permitiu praticar seu esporte preferido: cutucar os curitibanos com vara curta.
Iniciou-se no ofício ainda nos anos 1960, quando se radicou por aqui – não sem arrependimento mortal, como costuma salientar. “Fiquei porque meus médicos moram na capital. É uma cidade morna”, anarquiza. E não adianta citar exemplos do contrário, com o sóbrio intuito de redimir a estranha terra dos ligeirões vazios e estações-tubo cheias. Em defesa de sua tese, recorre a um dos bordões do amigo Sylvio Back: “Curitiba é um tambor de lata. A gente bate e o som não repercute”.
Meses atrás, ao comentar a obra com uma mulher de fino trato, a quem julgava ilustrada, temeu que ela chamasse a polícia. “Nem me conte”, decretou a interlocutora, tomada de síndrome de TRF4, e em vias de lhe acertar a ponta do salto no meio da testa, o cortador de cutículas à jugular. Em conversa com outro qualquer, também sobre o novo trabalho, recebeu um olhar de beneplácito, à beira da comoção. Ele quis saber se Padrella tinha sido molestado quando criança, daí ter escrito O menino. “Falei que quando criança, não”, brinca.
“Nessas horas, é como se a gente dissesse que numa casa existem fantasmas. É o que basta: não querem nem visitar”, compara, ao lembrar das reações até agora destinadas ao romance –  definido por ele como um arquipélago de historietas que se cruzam, na maior parte crônicas de época, tendo ao centro do enredo o que um dia foi chamado de “vício clerical”. Em torno desse pecado, na trama, paira o silêncio da comunidade e o preço pago pelas vítimas. “É um problema que existe há milênios. Mas as reações ao tema são isoladas. Meu livro vai passar batido. Nenhum pastor vai bater em mim”.
Padrella pode não ter razão em tudo o que alardeia, mas tem currículo. Em 1997, ao lançar a novela Meu bimbim, acreditou, por milésimos de segundo, num aumento de temperatura nas relações com o público. Talvez seja o seu melhor trabalho, um exemplar notável da literatura picante, um tributo a Henry Miller ou, quem sabe, a Cassandra Rios. Lançou-o como se preparasse um banquete. Reservou a boate Stardust, um inferninho ali pros lados da Rua dos Chorões. Para que os convidados não fossem devassados ao circular num lugar, digamos, tão explícito, distribuiu uma máscara de Zorro a cada um. Todo mundo se sentiu protegido. “Em qualquer lugar do mundo, uma cena assim seria notícia. Aqui…”
De uma coisa o autor não pode reclamar. Apesar da carreira intranquila, Meu bimbim permanece notícia. É divertido. O título (qualquer dúvida sobre seu significado, basta relacionar o nome à pessoa) enfrenta todas as sabotagens do inconsciente. É comum os bibliotecários o colocarem no setor de literatura infantil. Culpa do Padrella. Na hora de batizá-lo, deveria ter recorrido à imensa lista de nomes para os genitais masculinos usados no Brasil, listados pelo antropólogo Richard Parker (Corpos, prazeres e paixões). Encontraria um sinônimo menos aparentado do Xou da Xuxa. Outra fonte de confusão – o livro é assinado por um pseudônimo de NP, Franz Hertel. O recurso é criativo, mas costuma catapultar a obra à estante de literatura alemã ou, em última instância, literatura infantil alemã.
Os bimbins e suas variações para o tema deixaram Padrella em tranças outras vezes – em especial num dos muitos salões de arte dos quais participou. Em meio à mão pesada da ditadura militar, pintou um avião que lançava uma chuva de pênis sobre a população. Mais didático, impossível. A censura não gostou da brincadeira e uma autoridade baixou no vernissage – com farda cheia de estrelas, acolitado por dois soldados armados, prontos para uma ação moralizadora, como se a mostra representasse um atentado à soberania nacional.
A direção do museu teve de gastar todo o seu latim para explicar que o quadro tinha passado por uma comissão julgadora – e que, se fosse retirado, todas as outras peças premiadas iriam juntas. O salão seria fechado, com barulho – claro. Ânimos apaziguados, coube aos dois recrutas ficar em posição de sentido na frente da tela, tendo como paisagem de fundo os falos pintados pelo provocador. Adivinhem o que aconteceu? Sua resposta vale um milhão.