Pandemia

José Carlos Fernandes

Palavras boas e quinquilharias

José Carlos Fernandes
09/08/2020 11:00
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Tenho a impressão que as incertezas da pandemia e da política – nem sempre nessa ordem – nos colocam com o radar ligado, em busca do que os antigos chamavam “palavra boa”. A expressão é autoexplicativa, da casta do “bem viver”. Desejamos uma epifania, uma ideia redentora que funcione como uma lâmpada na sala escura. Não à toa, pedimos dicas de livros e filmes “bons” – e todo mundo sabe o que o adjetivo sugere. Trocamos poesias e músicas. Ligamos para os anciões – ou para jovens e adultos que tenham alguma sabedoria, para que nos trafiquem um verbo sob medida.
Ontem mesmo, na Rádio
Educativa, ouvi uma entrevistada – cujo nome miseravelmente não captei – dizer
algo como: “Não importa o que acontece, mas o que fazemos com as coisas que
acontecem”. Penso que já reproduzi a ideia para pelo menos meia dúzia de
pessoas próximas, como uma forma de dizê-la a mim mesmo. A recepção foi ótima.
E deduzo desse pequeno laboratório de expectativas que, de alguma maneira, projetamos
um tempo futuro em que o surto de coronavírus será passado, a quarentena uma
página da nossa biografia e o isolamento social uma piada sobre os curitibanos.
Neste dia, gostaríamos de poder dizer que fizemos o melhor possível, com aquilo
que aconteceu.
A busca pela “palavra
boa” descansa na capa dos livros. Na perspectiva do “não importa o que acontece,
mas...” reparei no que prometem os últimos livros que chegaram aqui em casa pelos
Correios – a obra literária da jornalista Noemi Jaffe (Não está mais aqui quem falou, O
que ela sussurra
, A verdadeira
história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário
); o urgente relato
da também jornalista Patrícia Campos Mello (A
máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital
);
Gabriel García Márquez (a coletânea de reportagens O escândalo do século); o último lançamento do crítico literário
britânico Terry Eagleton (autor do ensaio Humor
– o papel fundamental do riso na cultura
) e, por fim, a biografia da poeta
polonesa Wislawa Symborska, Quinquilharias
e recordações
, de Anna Bikont e Joanna Szczesna.
Meu encontro com Noemi
Jaffe é pré-pandêmico. Nasceu de duas entrevistas que ela fez, como repórter da
Folha de S. Paulo, com autores que,
digamos, nos levam pela mão. Uma delas foi com o escritor judeu Amós Oz – que
num mundo perfeito seria lido uma vez por dia por 7 bilhões de terráqueos. A Noemi,
Amós dá uma receita anti-tirania, o colocar-se no lugar dos outros e, mais,
olhar o quintal do vizinho, pois há mais verdade ali do que em qualquer outro
lugar. Simples assim. Palavra da boa. A outra entrevista foi com a blogueira do
The New York Times – Maira Kalman –
que fotografa anônimos pelas ruas e depois brinda essas imagens com versos e
prosas da melhor literatura. A realidade ganha o bônus da imaginação – e isso é
mágica.
Suspeito que ao se
distanciar cada vez mais do jornalismo e se embrenhar na mata fechada da
ficção, Noemi mais e mais faz mágica. Permitam a licença poética, Maira e ela
são como Irène Jacob no belo e enigmático filme A dupla vida de Veronique (1991),
de Kieslowski. “O dever do cavalo é botar um ovo”, brinca Jaffe, numa de suas
epígrafes, mostrando que a palavra boa pode ser, também, deliciosamente
absurda, a ponto de não nos deixar sossegado, em babas na frente da tevê. Estar
com Noemi é encontrar a cada capítulo de seus textos mínimos “cavalos que botam
ovos”. O fato e o imaginado são fronteiriços – e nesse momento, em particular,
sabemos o que isso quer dizer.
Bom, de Noemi Jaffe para
Wislawa Szymborska há uma curta distância. Dá tempo para um café, um trato bem
porco no box do banheiro, e se perder no calhamaço de mais de 500 páginas sobre
uma escritora que era avessa a entrevistas. Logo, planejava passar por aqui e
partir sem deixar muitas pistas, preferindo, por certo, que lessem a sua poesia
e pronto. Teriam sido uma dezena de conversas com a imprensa, dadas antes de
receber o Nobel de Literatura – quando somava 73 anos. Outras tantas depois de
laureada, sempre a contragosto. E encontros com suas biógrafas, debaixo de
solene resistência.
Devemos agradecê-las por ter
vergado essa velha senhora polonesa, uma amante de poemas divertidos – os
limeriques – e que, mais do que afeita a enfadonhas abstrações, se ocupava da
alma, sei lá, de um retrós de linha. Ou de chorar os sofrimentos de Lucélia
Santos em A escrava Isaura – uma das
novelas brasileiras que a poeta amou. Próximos que estamos dos objetos e
plantas da casa – com os quais, atire a primeira pedra “quem não”, andamos
fazendo confidências – só resta concluir que somos todos meio Szymborska. A
pandemia pode servir para isso – para mostrar que nosso lado “pancada” talvez
seja o nosso melhor.
Quanto aos demais autores
que – aqui no meu endereço – vieram acudir, para quem sabe fazer a coisa certa,
quero dizer que recomendo, em particular, Gabriel García Márquez. O autor de Cem anos de solidão e Amor nos tempos do cólera, sabe-se, não
sai de moda desde 1968. Mas a pandemia, por razões óbvias, nos atirou com tesão
incontido nos braços de Gabo. Ninguém melhor do que entende de doideira.
Para surpresa, os
encontros com Márquez em tempos de Covid-19 trazem uma estranheza. Em
documentários e depoimentos que pipocam por aí, emergem suas declarações sobre
ser um sujeito sem imaginação, que não inventava nada, quase um sujeito pastel.
Chega a parecer jogo de cena, afetação de escritor. Mas lembro de um relato do
cineasta Walter Salles Júnior sobre uma visita que fez, nos anos 1980, à cidade
colombiana de Aracataca – inspiração para a mítica Macondo, onde tudo pode
acontecer. Pois lá sentiu o forte cheiro da goiaba e se encantou com a moça que
passava bonita, de sombrinha, seguida por borboletas amarelas. Pois é, ou tudo
que a pena capta existe ou as altas temperaturas caribenhas fritaram os miolos
de Salles.
Fico com a primeira
opção, até porque a coletânea de reportagens que acaba de chegar ao mercado
parece confirmar que Márquez não inventava vírgulas – ele enxergava bem, ouvia
melhor ainda. Muitos dos detalhes que fazem suas coberturas jornalísticas
extraordinárias eram de conhecimento dos demais, com a diferença de que captava
ora o absurdo, ora a poesia que continham. Tal como Szymborska e Noemi Jaffe,
operava como um semiólogo de quinquilharias. O periférico do cotidiano desmonta
a cena principal. É o que mostra ao tratar da surreal neblina de Londres – na
qual as pessoas se desculpam quando esbarram, cegas, umas nas outra –; ou de um
crise hídrica em Caracas; ou ao sugerir que passa na cabeça de um barbeiro de
província ao colocar a navalha na garganta de um governante. Sua literatura é o
que fez com as coisas que lhe aconteceram. Palavra da boa.
Em tempo, essa conversa à toa estava prevista para ser iluminada por Umberto Eco. Foi o primeiro autor que me veio à mente ao ouvir a tal mensagem na rádio. Eco dizia que todos nós somos como livros ambulantes. Nem sempre nos damos conta disso. Mas, de repente, um fato – ou uma leitura de um livro – põe para funcionar a máquina imaginativa que somos. O botão vermelho é ligado. Passamos a fazer perguntas e nos tornamos buscadores de sentidos, o que só podemos fazer com o uso de palavras. Quando isso acontece – estamos inteiros. Tomara nos vejamos assim quando a pandemia for passado.