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Palavras boas e quinquilharias
| Foto: Arte: Felipe Lima

Tenho a impressão que as incertezas da pandemia e da política – nem sempre nessa ordem – nos colocam com o radar ligado, em busca do que os antigos chamavam “palavra boa”. A expressão é autoexplicativa, da casta do “bem viver”. Desejamos uma epifania, uma ideia redentora que funcione como uma lâmpada na sala escura. Não à toa, pedimos dicas de livros e filmes “bons” – e todo mundo sabe o que o adjetivo sugere. Trocamos poesias e músicas. Ligamos para os anciões – ou para jovens e adultos que tenham alguma sabedoria, para que nos trafiquem um verbo sob medida.

Ontem mesmo, na Rádio Educativa, ouvi uma entrevistada – cujo nome miseravelmente não captei – dizer algo como: “Não importa o que acontece, mas o que fazemos com as coisas que acontecem”. Penso que já reproduzi a ideia para pelo menos meia dúzia de pessoas próximas, como uma forma de dizê-la a mim mesmo. A recepção foi ótima. E deduzo desse pequeno laboratório de expectativas que, de alguma maneira, projetamos um tempo futuro em que o surto de coronavírus será passado, a quarentena uma página da nossa biografia e o isolamento social uma piada sobre os curitibanos. Neste dia, gostaríamos de poder dizer que fizemos o melhor possível, com aquilo que aconteceu.

A busca pela “palavra boa” descansa na capa dos livros. Na perspectiva do “não importa o que acontece, mas...” reparei no que prometem os últimos livros que chegaram aqui em casa pelos Correios – a obra literária da jornalista Noemi Jaffe (Não está mais aqui quem falou, O que ela sussurra, A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário); o urgente relato da também jornalista Patrícia Campos Mello (A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital); Gabriel García Márquez (a coletânea de reportagens O escândalo do século); o último lançamento do crítico literário britânico Terry Eagleton (autor do ensaio Humor – o papel fundamental do riso na cultura) e, por fim, a biografia da poeta polonesa Wislawa Symborska, Quinquilharias e recordações, de Anna Bikont e Joanna Szczesna.

Meu encontro com Noemi Jaffe é pré-pandêmico. Nasceu de duas entrevistas que ela fez, como repórter da Folha de S. Paulo, com autores que, digamos, nos levam pela mão. Uma delas foi com o escritor judeu Amós Oz – que num mundo perfeito seria lido uma vez por dia por 7 bilhões de terráqueos. A Noemi, Amós dá uma receita anti-tirania, o colocar-se no lugar dos outros e, mais, olhar o quintal do vizinho, pois há mais verdade ali do que em qualquer outro lugar. Simples assim. Palavra da boa. A outra entrevista foi com a blogueira do The New York Times – Maira Kalman – que fotografa anônimos pelas ruas e depois brinda essas imagens com versos e prosas da melhor literatura. A realidade ganha o bônus da imaginação – e isso é mágica.

Suspeito que ao se distanciar cada vez mais do jornalismo e se embrenhar na mata fechada da ficção, Noemi mais e mais faz mágica. Permitam a licença poética, Maira e ela são como Irène Jacob no belo e enigmático filme A dupla vida de Veronique (1991), de Kieslowski. “O dever do cavalo é botar um ovo”, brinca Jaffe, numa de suas epígrafes, mostrando que a palavra boa pode ser, também, deliciosamente absurda, a ponto de não nos deixar sossegado, em babas na frente da tevê. Estar com Noemi é encontrar a cada capítulo de seus textos mínimos “cavalos que botam ovos”. O fato e o imaginado são fronteiriços – e nesse momento, em particular, sabemos o que isso quer dizer.

Bom, de Noemi Jaffe para Wislawa Szymborska há uma curta distância. Dá tempo para um café, um trato bem porco no box do banheiro, e se perder no calhamaço de mais de 500 páginas sobre uma escritora que era avessa a entrevistas. Logo, planejava passar por aqui e partir sem deixar muitas pistas, preferindo, por certo, que lessem a sua poesia e pronto. Teriam sido uma dezena de conversas com a imprensa, dadas antes de receber o Nobel de Literatura – quando somava 73 anos. Outras tantas depois de laureada, sempre a contragosto. E encontros com suas biógrafas, debaixo de solene resistência.

Devemos agradecê-las por ter vergado essa velha senhora polonesa, uma amante de poemas divertidos – os limeriques – e que, mais do que afeita a enfadonhas abstrações, se ocupava da alma, sei lá, de um retrós de linha. Ou de chorar os sofrimentos de Lucélia Santos em A escrava Isaura – uma das novelas brasileiras que a poeta amou. Próximos que estamos dos objetos e plantas da casa – com os quais, atire a primeira pedra “quem não”, andamos fazendo confidências – só resta concluir que somos todos meio Szymborska. A pandemia pode servir para isso – para mostrar que nosso lado “pancada” talvez seja o nosso melhor.

Quanto aos demais autores que – aqui no meu endereço – vieram acudir, para quem sabe fazer a coisa certa, quero dizer que recomendo, em particular, Gabriel García Márquez. O autor de Cem anos de solidão e Amor nos tempos do cólera, sabe-se, não sai de moda desde 1968. Mas a pandemia, por razões óbvias, nos atirou com tesão incontido nos braços de Gabo. Ninguém melhor do que entende de doideira.

Para surpresa, os encontros com Márquez em tempos de Covid-19 trazem uma estranheza. Em documentários e depoimentos que pipocam por aí, emergem suas declarações sobre ser um sujeito sem imaginação, que não inventava nada, quase um sujeito pastel. Chega a parecer jogo de cena, afetação de escritor. Mas lembro de um relato do cineasta Walter Salles Júnior sobre uma visita que fez, nos anos 1980, à cidade colombiana de Aracataca – inspiração para a mítica Macondo, onde tudo pode acontecer. Pois lá sentiu o forte cheiro da goiaba e se encantou com a moça que passava bonita, de sombrinha, seguida por borboletas amarelas. Pois é, ou tudo que a pena capta existe ou as altas temperaturas caribenhas fritaram os miolos de Salles.

Fico com a primeira opção, até porque a coletânea de reportagens que acaba de chegar ao mercado parece confirmar que Márquez não inventava vírgulas – ele enxergava bem, ouvia melhor ainda. Muitos dos detalhes que fazem suas coberturas jornalísticas extraordinárias eram de conhecimento dos demais, com a diferença de que captava ora o absurdo, ora a poesia que continham. Tal como Szymborska e Noemi Jaffe, operava como um semiólogo de quinquilharias. O periférico do cotidiano desmonta a cena principal. É o que mostra ao tratar da surreal neblina de Londres – na qual as pessoas se desculpam quando esbarram, cegas, umas nas outra –; ou de um crise hídrica em Caracas; ou ao sugerir que passa na cabeça de um barbeiro de província ao colocar a navalha na garganta de um governante. Sua literatura é o que fez com as coisas que lhe aconteceram. Palavra da boa.

Em tempo, essa conversa à toa estava prevista para ser iluminada por Umberto Eco. Foi o primeiro autor que me veio à mente ao ouvir a tal mensagem na rádio. Eco dizia que todos nós somos como livros ambulantes. Nem sempre nos damos conta disso. Mas, de repente, um fato – ou uma leitura de um livro – põe para funcionar a máquina imaginativa que somos. O botão vermelho é ligado. Passamos a fazer perguntas e nos tornamos buscadores de sentidos, o que só podemos fazer com o uso de palavras. Quando isso acontece – estamos inteiros. Tomara nos vejamos assim quando a pandemia for passado.

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