José Carlos Fernandes

Páscoa, eu estava lá

José Carlos Fernandes
21/04/2019 20:00
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Ilustração: Felipe Lima

“Sexta-Feira Santa? Mas o que ela tem de santa?
Quase quatro décadas depois, ainda sou capaz de ouvir várias vozes, repetindo essa pergunta, com todas os falsetes permitidos pela inculta e bela língua de Camões. A fala faz parte de um jogral – dito de cor, acompanhado de gestos teatrais – de autoria do padre Nereu de Castro Teixeira. Chama-se Paixão de Jesus Cristo segundo todo mundo. Nereu é um sujeito talentoso, cuja fama se restringe ao ambiente religioso. Participei da montagem mais de uma vez, nos meus 13 anos de seminário católico, durante a Semana Santa. Confesso que vivi.
A melhor versão da peça foi a da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, onde cursei Filosofia. Quem assinou a direção foi um amigo – Valdir Tapetti Júnior. Dei uma mãozinha, quase nada, mas posso dizer que nunca nos sentimos tão modernos. Valdir – uma espécie de Zé Celso dos canaviais paulistas – vestiu uma dúzia de jovens da comunidade com lençóis brancos e os fez entrar na igreja ao som de Another brick in the Wall, de Pink Floyd.
O altar tremeu ao som da introdução matadora da banda e da coreografia libertária inventada pelo encenador. Depois do refrão “We don’t need no education/ We dont need no thought control/ No dark sarcasm in the classroom /Teachers leave them kids alone/ Hey! Teachers! Leave them kids alone!” a frase clássica do jogral ganhava ainda mais impacto: “Sexta-feira santa? Mas o que ela tem de santa?”
No final, depois dessa e de outras revoluções estéticas promovidas pelo diretor – que também fazia o papel de Jesus – uma paroquiana, entrada em anos, o cumprimentou com os olhos marejados: “Você estava ótimo no papel de louquinho”. Rimos de nervoso: a contar por ela, ninguém tinha entendido xongas. Hoje vejo que a frase fazia sentido. Ah, o ano era o orwelliano 1984 – e a ditadura militar estava perto do fim.
Soa estranho, mas à revelia dos ganhos espirituais, a Semana Santa figurava entre os momentos mais divertidos da vida no claustro. Não o único, é bom que se diga. Havia o sagrado futebol das quintas-feiras, os piqueniques anuais à beira do Rio Cabeça, os jornais mensais impressos sabe-se lá como, as missas solenes, os terços na gruta, as gincanas… Mas os dias que iam do Domingo de Ramos à Pascoela – feriado exclusivo do clero, comemorado na segunda-feira depois da Páscoa – soavam sempre como as férias malucas de monsieur Hulot.
Tudo saía dos eixos, com o claro intuito de dar som e fúria à maior festa do cristianismo. Era nosso carnaval. O ensaio dos cantos começava um mês antes. Alguns novos solistas haveriam de se destacar – eu nunca entre eles. “Povo meu que te fiz eu, diz em que te contristei. Eu te fiz sair do Egito, com maná te alimentei…”. Ainda choro quando canto esse verso em segredo.
A divisão das tarefas ia para o mural, com precisão corporativa. Os mais hábeis fariam o papel de mestre-de-cerimônia nas liturgias, que naquela ocasião fugiam ao ramerrame. Tinha muita procissão, missal carregado para lá e para cá, tochas, ladainha e, sobretudo, turíbulos acesos para queimar incensos. Durante nove anos [não contam na aposentadoria], na função de sacristão, meu trabalho era queimar carvão e fazer fumaça para não deixar Deus dormir. Não havia tutorial sobre como operar aquela traquitana milenar, só intuição.
Em tempo, o posto de líder supremo da sacristia me dava status. A tarefa de cuidar das alfaias, fazer hóstia e garantir o sucesso das incensações só era comparada, em importância, à de bibliotecário, secretário ou chefe do refeitório – local onde quase uma centena de guris esfomeados precisavam de autoridade máxima para que não se esganassem por uma asa de frango. O Pai-Nosso e o agradecimento antes do almoço e do jantar demoravam uma eternidade. Estômagos roncavam. Sobrevivemos.
O melhor daqueles dias era a programação da Semana Santa, à prova de tédio. Lembro do Haggadah – o ritual da Páscoa judaica – e das vigílias, com todo mundo acordado para velar o Santíssimo Sacramento de quarta para quinta-feira. O evento acontecia no bosque do seminário, ao sabor dos infernais mosquitos “porvinha”, que faziam Êxodo rumo ao nosso couro. Rolava sangue. Uma radiola tocava sem parar um single, com a música “Getsêmani… vigiai e orai”. Era linda e sonolenta. Devo ter pedido muito a Deus pela mãe, pelo pai e uma ajudinha celestial para passar em Física e Matemática, meu calvário. Fui atendido – um dia conto o milagre.
Mas nada, nada superava as encenações da Paixão. Afora as produzidas pelo padre Nereu Teixeira e publicadas em livrinhos da editora Paulinas, havia as escritas por nós mesmos, com base em interpretações tresloucadas das Escrituras. Ninguém foi parar na fogueira da Inquisição. Havia um colega de batina que dominava o mercado local. Hoje é padre, artista, grande figura, dono de humor e generosidade sem igual. À época tinha o monopólio do papel principal, ainda que não fizesse o tipo físico de um judeu curtido no sol de caatingas do Oriente Médio. Era alto, loiro, de olhos claríssimos. Um Cristo nórdico, parecido com os que víamos ilustrado nas Folhinhas do Sagrado Coração de Jesus.
Nessas montagens, toda sorte de blasfêmia podia acontecer, em especial se o reitor estivesse fora, prestando serviços a alguma paróquia. Um ator iniciante, bem lembro, disse “afasta-te de mim Santana” em vez de “afasta-te de mim Satanás”. Risos, deboches, índice de caridade abaixo de zero. E o próprio Jesus-pintura-flamenga, numa montagem desastrada, desceu da cruz e deu um esporro em toda a plateia ao perceber a falta de atenção com… a salvação do mundo.
Disse qualquer coisa a respeito de Cristo continuar a ser crucificado por causa de gente como nós. Um engraçadinho lhe jogou uma pedra, pequena, mas uma pedra. E as ovelhas do seminário, trazidas como coadjuvantes para a cena, não se contiveram e empestearam o palco com uma incontinência intestinal dos diabos. Nunca uma Paixão foi tão lembrada como aquela.
Em meio à piedade, não faltavam comédias de erros. As gafes abasteciam a rádio-corredor com piadas que eram contadas e recontadas até as vésperas do Natal, quando o estoque se renovava. Houve uma ocasião em que um colega – sujeito solene, com voz de radialista – inventou uma nova versão para o episódio da sarça ardente, leitura obrigatória na Vigília da Páscoa. Em vez de dizer que Moisés viu “o braseiro fumegante” leu que “Moisés viu o brasileiro fumegante”. A frase daria uma ótima letra de lambada. Perdemos a respiração de tanto rir. Detalhe – ninguém convenceu o nosso amigo leitor de Êxodo, 19 que ele estava errado, e de que não havia”brasileiros fumegantes” no Monte Sinai. A não ser que algum terraplanista nos prove o contrário.
Quando a gente chegava ao seminário maior, as Semanas Santas deixavam de ser internas. Éramos enviados ao interior. De todas as missões das quais participei, a mais legal ocorreu numa cidadezinha da divisa de São Paulo com Minas Gerais – Santo Antônio da Alegria. Contava 6 mil habitantes. A celebração da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo parecia mobilizar toda a redondeza, sem exceção. E como na folia carioca ou o Boi Caprichoso, havia quem fosse o dono da festa e dali tirasse seus 15 minutos de fama.
Era o caso da Verônica da Procissão do Cristo Morto. O cortejo é um evento extralitúrgico, barroco, emocional, um teatro popular. No interior do país, é comum que se formem dois grupos de fiéis, que caminham pelas ruas em direções opostas. Há os que carregam a imagem em que Jesus aparece com a cruz às costas. E os que levam o andor de Nossa Senhora das Dores. Lá pelas tantas, as duas procissões luminosas se cruzam, provocando o encontro do filho e da mãe. A frase, como é de se supor, costuma causar algumas confusões – melhor não reproduzi-las.
Antes que Jesus e Maria passem um ao lado do outro, Verônica – a mulher que, reza a tradição, teria enxugado o rosto ensanguentado de Cristo e cujo pano forma o primeiro sudário – sobe num lugar alto, canta e desenrola o pano aos poucos. Cabe a ela revelar a face do Messias. Em Santo Antônio da Alegria, a Verônica parecia estar há 50 anos no posto. Suponho que já não lembrava o cântico em latim que um dia lhe ensinaram. Sem problemas: Verônica improvisava, numa língua que desafiava o próprio Espírito Santo – poliglota como se sabe. As únicas expressões reconhecíveis eram um “ora pro nobis” aqui e um “Dei” acolá. E querem saber – era um barato.
Até hoje digo que quem não foi em procissão, não viveu. É uma das poucas certezas no momento.