José Carlos Fernandes

Santa Maria Bueno, mártir e negra

José Carlos Fernandes
05/07/2020 12:00
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Como a maior parte dos
curitibanos, não lembro em que dia e hora – nem pela boca de quem – ouvi a
história de Maria Bueno, uma de nossas santinhas municipais. A outra é a dona
Helena Kolody, a poeta – assim denominada, no cândido diminutivo “santinha”,
pelo artista e performer Hélio Leites
A ela dedicou um fã-clube e demais honras bordadas em predarias. Os poemas de
Helena são decorados pelas gentes, repetidos como se fossem oração, e escritos
no muro das escolas. De Maria Bueno, a outra, se conta a vida, há mais de um
século, não raro ao pé do ouvido, creio que nunca no meio de uma aula. Nessa
transmissão oral, as credenciais nem sempre são as melhores – alvo que se
tornou de um folhetim apimentado, feito de rosas e de sangue, repetido de
tempos em tempos. Pouco importa nesse caso. Maria tem Curitiba a seus pés.
Maria Bueno – uma
ex-escrava alforriada – morava numa pensão de lavadeiras na hoje Saldanha
Marinho, 798, aquela rua estreita, escura, mal falada, hoje ainda toda de paralelepípedos.
Dali teria saído para lavar roupa num dos braços do Rio Ivo – precisamente no
ponto onde hoje a Rua Vicente Machado cruza com a Visconde do Rio Branco. No
dia 29 de janeiro de 1893, levou um golpe de arma branca, desferido por seu
namorado ou candidato a – o soldado paraibano Ignácio José Diniz, barbeiro na
Cavalaria do Exército. O degolador era hábil com navalhas. Ela,
uma popular, conhecida das ruas, como tantas lavadeiras de então.
A vítima passou por autópsia
em espaço ao lado da Santa Casa de Misericórdia, na Praça Ruy Barbosa,
inaugurando, dizem, a crônica policial daquela cidade cercada de pinheirais. Motivo?
Na noite anterior ao sucedido, Bueno teria ido a um baile na Sociedade
Beneficente Operária, no Alto São Francisco. Era então madura, livre e trabalhadora
– um corpo estranho numa redondeza pacata, pequenina, úmida, um vilarejo
perdido a meio caminho entre os Pampas e a civilização.
O desfecho da tragédia é
conhecido. A mulher que sobreviveu à sina da escravidão sucumbiu ao ciúme de um
homem. Crime passional. Dias depois, a vela que lhe acendeu um anônimo piedoso,
no local do assassinato, operou milagres ou a crença de que milagres existem. Espalhou-se
que a chama não apagava nunca. O lugar se tornou um luzeiro – cuja beleza de
tantas velas juntas é uma das mais belas crônicas da capital paranaense. Teria
ganhado missa de um mês, rezada pelo padre José Maria Tedeschi, possivelmente nas
dependências da Sociedade Beneficente 13 de Maio, na Alameda Princesa Isabel.
Maria Bueno não tardaria
a ganhar a parte que lhe cabia no latifúndio do Cemitério Municipal São
Francisco de Paula – e visitas furtivas, à noite, como que por vergonha da
graça pedida e do status incomum da mensageira. Passa a ser reverenciada,
inclusive por aqueles que a chamaram de “prostituta”. Tal fama só pode estar ligada
à sua condição de ex-escrava, logo, um dia abusada por seus donos; logo, um
corpo à disposição. Não raro é assim que ela nos é descrita – meio santa, meio
puta. Meio negra, meio branca. Das as nossas Marias, é a mais interessante.
**
Não faltam biógrafos a Maria Bueno. Cada
morador da cidade o é. Também se fala dela nos terreiros – nos quais, por
ironia, embranqueceu. Há quem brinque que a mártir deixou de ser negra por
causa da atriz Gilda Elisa, alvíssima, que a interpretou numa telenovela local.
É uma meia verdade. Foram muitas as apropriações da personagem, em montagens
como Maria Bueno, de Oracy Gemba, na
década de 1970, trazendo Tonica Chagas no papel título – e releituras em
espetáculos posteriores, como Grato,
Maria Bueno
, sob a batuta de Raul Cruz, Wellington Silva e César Almeida.
As tinturas da história mexeram com o coreógrafo Carlos Trincheiras e com o
estilista Silmar Alves.
No imaginário local, a santa popular negra virou
uma morena – eufemismo para uma gangorra racial na qual adoramos brincar – “nem
preta, nem branca, muito pelo contrário”. Clareou aos poucos, sendo assim
retratada até pelo mestre Alfredo Andersen (cabelos curtos, porte de legionária
por trás do vestido vermelho). A imagem do jazigo do Municipal segue a onda. Racismo
tem dessas coisas. Quanto mais devotos, mais Maria Bueno se tornou uma peça de
ficção.
Até que apareceu um biógrafo tipo exportação –
Edvan Ramos da Silva, sessentão, antiquário que adotou para si a divertida alcunha
de Barão de Potyguaras. Nunca se soube tanto sobre Maria Bueno desde que o
forasteiro do Rio Grande do Norte desembarcou em Curitiba, 30 e tantos anos
atrás. Tornou-se biógrafo oficial – ainda que antes dele o advogado Valério
Hoerner tenha se dedicado ao ofício, com méritos. Some-se à lista as
pesquisadoras Sandra Stoll, Geslline Braga, Conceição dos Santos e Vanessa
Durando – autoras do delicioso Maria
Bueno: santa de casa
. A psicóloga e historiadora Andrea de Alvarenga Lima –
interessada no fenômeno das visitações ao túmulo da santinha. E de Clarissa
Grassi – que apresenta Maria nas concorridas visitas guiadas ao Cemitério
Municipal.
Para Edvan, tudo começou numa visita de
turismo às terras frias. Durante um passeio ao Municipal, encantou-se ao saber
da história da ex-escrava assassinada por um soldado em fúria, das velas, da
promoção dos restos mortais ao melhor endereço do campo santo. “A partir de
então, me senti perseguido por uma soma de coincidências”, conta Edvan. Mal
tinha aprendido a andar na cidade quando acabou usando os serviços de uma
oficina mecânica, plantada no ponto exato dos acontecidos de 29 de janeiro de
1893. De outra feita, descobriu a coincidência de que o médico que fez o
atestado de óbito de Maria Bueno – Antônio Rodolfo Pereira de Lemos, carioca de
passagem – era negro como ela, uma raridade, o que talvez justifique ter
prestado atenção às marcas de ferro na perna daquela mulher, deixando também
essa violência registrada no documento. Teria financiado os funerais que, sim, causou
comoção na cidade.
De todos os achados, contudo, nada se compara
ao santinho com o rosto de Maria Bueno. O encontro dessa raridade é obra máxima
de Edvan – e ele um dia vai nos contar como chegou a ela. Acredita-se que o
objeto circulasse como instrumento de devoção entre os distintos “homens e
mulheres de cor” – o que confirma que Maria Bueno teria sido cultuada nas
irmandades, como as de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Paira
o mistério por que diabos se tornou um desafeto do clero, passando a ser
referendada nas religiões afro, mais liberal por natureza. Hipótese? No período
afirmativo dos negros pós-Escravidão, a figura de Maria talvez fosse um tanto
exótica. Era, afinal, uma lavadeira de 30 anos, sem marido ou filhos, às voltas
com um namorado truculento e dada a idas às baladas de então. Mesmo assim, de
pouco adiantou o banimento dos altares. A santidade profana de Maria Bueno
venceu por vias tortas.
**
“Você ainda vai perder a credibilidade”,
brinca a mulher de Edvan, sobre a demora em terminar a biografia de Maria Bueno,
prometida para “logo”. Ele não se apressa. Tem por método duvidar de todas as
certezas, por cozinhar bem todas as supostas verdades sobre a vida e morte da
santa que não foi. Vai atrás. Aporrinha arquivistas. Não sossega enquanto não
encontra um documento. Não raro, precisa se imbuir da altivez do fictício Barão
de Potyguaras para exigir que as portas sejam abertas.
O livro se avoluma e aguarda chegar ao prelo.
Historiador à sua maneira, Edvan acaba por se perder um pouco em cada
personalidade negra que encontra pelo caminho, em especial os contemporâneos de
Maria Bueno. Cultiva recuos e pontos de fuga – pode falar por horas sobre o
Movimento Abolicionista Paranaense e tratar de figuras da época, como Fernando
Simas, Vicente Moreira de Freitas e João Antônio Barros como se os tivesse
encontrado no quiosque da Boca Maldita. Sabe das mulheres que emergem em torno
da morte de Bueno, como Mariana da Silva Pinto e Sebastiana Garcia. Das
lavadeiras da Rua da Misericórdia. Investiga um suposto cemitério de
prostitutas na Água Verde. Uma de suas obsessões confessas é o médico Antônio
Rodolfo Pereira de Lemos. Quer desenhar com máxima precisão o mundo em que ela
viveu – afinal, Curitiba se divide em antes e depois daquele crime de janeiro.
Em tempo, o livro de Edvan Ramos da Silva vai
se somar a uma tendência do mercado editorial brasileiro, que tira do limbo as
personalidades negras do país. O revisionismo outra coisa não faz senão
justiça. Fala de reações negras, como a Revolta do Malês, pouco exploradas nos
livros de escola. De sujeitos como os abolicionistas José do Patrocínio e Luiz
Gama. De escravos porretas – a exemplo dos descritos no livro Ganhadores, de João José Reis. De
mulheres como Luiza Mahin e de Maria Bueno – negra, mártir, milagreira e até
libertária, conhecida lá pelas bandas da estranha cidade de Curitiba.