Redação

Saudades do “chiqueirinho”? Melhor não

Redação
25/08/2019 20:00
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Quando
eu era adolescente – e isso faz muito tempo –, lembro de ter ouvido um adulto
dizer que “não havia ninguém neste país que não tivesse pelo menos um parente
ou amigo morto num acidente de trânsito”. Numa regionalização da frase, havia
quem garantisse não existir um curitibano que não contabilizasse, igualmente, a
morte de pessoas próximas nas estradas que ligam a capital às praias ou ao
litoral de Santa Catarina. Adoraria não ter acreditado, agarrando a minha
pós-verdade, mas não dei conta de tantas evidências.
Não havia teor estatístico na afirmação, concordo. Mas fazia sentido. Na lógica dos “seis graus de separação", todo mundo conhecia alguém que conhecia alguém que foi abatido numa batida, colisão, ou que etiqueta se prefira. E não é de todo absurdo afirmar que, em tempos idos, a sensação de proximidade sufocante com as piores notícias de trânsito não podia ser classificada como uma paranoia, neurose ou excesso de conversa fiada no portão. Era real, batia à porta, vinha por telefone. “Alô. Sabe quem morreu na estrada?”
Passei pela vida escutando narrativas semelhantes. Ainda piá, chegava a fazer a lista dos nossos mortos em acidentes de automóvel. Tinha 6 anos quando meu pai capotou seu carro na volta da praia. Saldo de uma morte dentre os envolvidos. Abri um bocão que fez eco no Campo do Atlético. Cinco anos depois, chegou a minha vez. Fui atropelado por um Fusca, que fugiu sem prestar socorro. Lanhei todo o rosto. Arruinei os joelhos – sepultando minha carreira de jogador de futebol (brincadeirinha). Saldo de um mês sem ir à aula, uns tantos conceitos “B” no boletim e uma fobia crônica: sempre desconfio que algum motorista vai desrespeitar a faixa do pedestre, condenando-me a uma cadeira de rodas.
A sociedade brasileira se organizou em torno de uma de suas piores faces, a violência no trânsito. Cansamos de contar mortos e feridos
Os
tempos seguiram, engordando a estatística doméstica. Estão na conta um amigo de
infância, o Célio; Bia, a jovem colega de minhas irmãs; o Carlos da Vila
Guaíra, que cantava como ninguém... A linda Jaqueline Abreu, de quem nunca
falamos sem lhe dedicar um minuto de silêncio. O viaduto que liga a estrada da
Praia de Leste à rodovia sempre será para mim a lembrança de uns três
conhecidos que tiveram ali o seu ponto final. Sem falar das histórias que
envolvem vizinhos. Não posso aqui reproduzi-las porque eles, em confidência, me
contaram que conseguem levantar da cama desde o acontecido com seus familiares,
mas não se sentem capazes a tratar do assunto. Desconfiam que morreriam de
tristeza. Uma dessas narrativas renderia um conto de amor e tragédia: contei-o tempos
depois à filha da mulher que se foi “na curva do Jóquei Clube” – mal pôde
conviver com a mãe.
É
preciso ter estômago para circular nessas fronteiras. Declinei de dois anos de
voluntariado na Pastoral da Saúde por passar mal, mais de uma vez, diante das
vítimas de trânsito no então Hospital do Cajuru. Não havia semana sem me ver
diante dos que se tornaram cegos, amputados, paraplégicos. Depois vieram as
lides jornalísticas, que trouxeram a reboque a confidência direta ou indireta
de “abates” em sinais furados e velocidade ultrapassada. A propósito, “abates” ocorridos
em Fuques com crianças colocadas no chiqueirinho, e em possantes convertidos em
máquinas de moer carne. Fico nos cascos quando escuto incautos dizerem que
“naquele tempo” não acontecia nada. Perguntem a quem viu a lata toda virar uma
bolinha de papel. Éramos reféns de estradas em penúria e ignorantes entregues à
ausência de cinto de segurança e da cadeirinha.
À revelia dos impressionismos que rondam esse tema cinzento, todos nós temos motivos de sobra para acreditar que o Brasil – cujo trânsito, em meados do século, horrorizou o escritor francês Albert Camus, um homem que tinha presenciado a Segunda Grande Guerra – melhorou muito nas últimas décadas, afirmação estranha em se tratando do país que ainda mata 110 pessoas em média por dia, na trombada. As evidências de que avançamos são fartas – a legislação de 1997, a vigilância, os meios eletrônicos usados para medir velocidade nas estradas, campanhas de respeito a pedestres. Quem já se deu ao trabalho de acompanhar os reclames sobre acidentes, feitos em outros países, sabe que nesse quesito o Brasil é tímido como uma noviça. Passamos do inocente “Papai não corra, papai não morra”, acompanhado do ímã com a foto das crianças no painel, para imagens televisivas em fundo preto “ilustradas” com o barulho de uma freada. O realismo empregado nos reclames da Austrália, por exemplo, provoca vertigem seguida de engulhos. Perde-se o chão diante de uma criança voando pela janela do carro, mas parece ser essa uma das únicas linguagens que o motorista entende – aqui e na Cochinchina. A outra linguagem é a multa e a perda de pontos na carteira. Não pode dar moleza.
Como
boa parte dos colegas de jornalismo da minha geração, tive a oportunidade de
ver as notícias de acidentes de trânsito saírem dos rodapés das páginas
policiais para as notícias de cotidiano. Meu pai, que trabalhou em jornal,
guardava uma foto do padre João Bagozzi estatelado no asfalto, ao lado da
Lambreta que conduzia em 1962, quando o jogo acabou para ele. Esse tipo de
abuso de imagem, nunca mais. Os acidentes passaram a ser tratados com gráficos
e sustentados pela palavra de especialistas. Objetivo? Gerar políticas públicas.
O termo “mobilidade” entrou para o nosso vocabulário – em especial a partir de
2007, quando CWB chegou a 1 milhão de automóveis. Em resposta, o cidadão comum
saiu da redoma da fatalidade – o tal do “chegou a hora” – e passou a reclamar
sinalização, redutores de velocidade, respeito aos pedestres. Uma cidade para
pessoas, no resumo da ópera. Demos voz ao Goura e à Cristiane Yared.
Penso que fizemos um bom trabalho – muito melhor do que contabilizar mortos na volta de um feriadão, sem oferecer nenhuma alternativa para a sociedade. Certa vez, ao agradecer à psicóloga Iara Thielen pela disposição em sempre nos atender, ouvi em resposta que “não havia de quê”. Para ela – uma notável pesquisadora do comportamento dos condutores, decana do Núcleo de Psicologia do Trânsito da UFPR –, a imprensa tinha feito mais pelo assunto do que qualquer outra instituição. Sabíamos que podíamos falar com Iara depois das 20 horas, sábado pela manhã, interromper suas aulas, pedir para reportar a aplicação do Metaphor, teste que avalia o comportamento no trânsito. Nunca negou a palavra. A elas se somavam outras fontes, como o artista plástico Luiz Arthur Montes Ribeiro – cujo ação paralela à das tintas e pincéis eram aulas em concorridos cursos sobre o assunto. O jornalista especializado Jota Pedro Correia; os versados Marcelo Oliveira e Rosângela Battistella; o médico de trauma Rached Hajar Traya, o advogado Gilberto Gaeski. Vai longe.
Sempre desconfio que algum motorista vai desrespeitar a faixa do pedestre, condenando-me a uma cadeira de rodas
Tudo isso é para dizer – sem medo de errar – que a sociedade brasileira se organizou em torno de uma de suas piores faces, a violência no trânsito. Cansamos de contar mortos e feridos. E de ter medo de que uma viagem qualquer para Matinhos ou Barra Velha acabasse num telefonema no meio da noite. É para dizer também que em meio às tantas desordens desnecessárias produzidas pelo atual governo – a lista de grupos, causas e pessoas agredidas de graça ultrapassa 50 – está o abalo sofrido na área do trânsito. Ao banalizar a questão, contradizendo quem entende do riscado e endeusando o senso comum, o presidente Bolsonaro fere a regra do bom exemplo, uma das mais sólidas do processo civilizatório. Os efeitos agora estão debaixo do nariz. Tem mais motorista dando ferro, cantando pneu, tirando finas, enfiando o dedo na buzina. Perco as contas das faixas de pedestres invadidas, sem pudores. Já me senti o professor de Matemática da Praça da Paz Celestial, plantando-me na faixa elevada ao lado da Igreja Bom Jesus do Cabral, por onde circulo. PQP.
Houve
um aceno assassino à permissividade – escondido no raciocínio classe média de
que o comprador de um carro caro tem mérito para pisar no acelerador. Que coisa
mais Barra da Tijuca, minha gente. Hora de reler Fé em Deus e pé na tábua, estudo do sociólogo Roberto DaMatta para
a inominável arbitrariedade dos brasileiros quando o assunto é “brincar de
carrinho”. Quem apoia tal lógica desconhece que o condutor é uma máquina cheia
de botões, alguns dignos do Doutor
Fantástico
, do Kubrick. Alguns desses dispositivos informam o cérebro de
que ele/ela podem tudo, que estão no seu direito. Sentem-se numa armadura
medieval. Ignoram de queixo erguido que o trânsito é um espaço público, uma
experiência social. Num segundo de arrogância pode dar origem às lápides mais
tristes dos cemitérios. Duvida? Faça o exercício de ler o que está escrito no
adeus aos que se foram depois de um acidente. E procure um ombro para chorar.