Meio ambiente

José Carlos Fernandes

Serão muitos pinheiros

José Carlos Fernandes
10/05/2020 15:00
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Arte: Felipe Lima

Em conversa com o líder indígena Kretã Kaingang – filho do mítico cacique Ângelo Kretã – o deputado estadual Jorge Brand, o Goura (PDT-PR), 40 anos, ouviu uma dessas declarações de “arrancar o peito”, como se dizia. Kretã lembrou que para os povos caingangues, a certeza de que tinham chegado em casa, depois da busca por terras sem males, vinha quando percebiam no horizonte os pinheiros-do-paraná.
A contar por essa
tradição, hoje os índios custariam a encerrar a viagem, indo parar nos campos
de Lages, em Santa Catarina. No Paraná, a área preservada de araucárias não
chega a 1% da cobertura original, uma flagrante contradição, uma violência
ambiental. O pinheiro está para a região como as nuvens estão para o céu.
A maior parte dos demais paranaenses não é muito diferente dos caingangues. Difícil quem não se sinta em casa ao ver mesmo que seja um mísero e solitário pinheiro – altivo, intransferível e em pé na beira de uma estrada. Goura conta que se sentiu assim ano passado, ao sobrevoar o Parque Nacional do Iguaçu e perceber, lá de cima, os inícios de uma floresta de pinheiros. Misto de emoção e melancolia – o corredor de mata logo é interrompido, como uma conversa que fica sem final.
Projeto de lei visa devolver ao Paraná a árvore que lhe pertence e também garantir alimentos, recuperar o que é possível da biodiversidade
Há mais de 70 anos, quando o escandaloso bota abaixo começou, as araucárias se estendiam do sul de Minas Gerais até o Norte do Rio Grande do Sul, encontrando aqui o seu ápice. Pois essa paisagem virou quase uma lenda do Saci Pererê – e a gente, bem se diga, se acostumou à fatalista argumentação de que para esta tragédia, não tem remédio. Sair plantando pinheiros por aí é visto como coisa de doido varrido, pois o bioma nunca mais se recuperará. Sem falar da solene dor de cabeça quando a árvore símbolo do estado, já grandinha, der de quebrar calçadas e despencar sobre os telhados, pondo em risco as chaminés, a cristaleira da sala e o pescoço dos moradores. Só que não...
A novidade é que tramita
na Assembleia Legislativa do Paraná um projeto de lei 495/2019 – de autoria dos
deputados Luiz Cláudio Romanelli (PSB-PR), Emerson Bacil (PSL-PR) e Hussein
Bakri (PSD-PR), já aprovado em primeira instância – de incentivo ao plantio de
pinheiros em áreas hoje ocupadas por pinus, eucaliptos e outros forasteiros. Será
uma substituição simbólica, mas também econômica. A proposta visa devolver ao
Paraná a árvore que lhe pertence, mas também garantir alimentos, recuperar o
que é possível da biodiversidade e, a médio e longo prazo, incentivar o corte e
comercialização da madeira – em condições a serem discutidas, provavelmente com
vozes alguns decibéis acima do normal. Se tem pinheiro na história, tem paixão.
O projeto – cujos méritos
são indiscutíveis – encontrou alguns senões e deve passar por ajustes. “Acendeu
o sinal amarelo”, diz Goura, sobre o dedo levantado por entidades como a SPVS e
o Ministério Público. Dentre os apartes, pede-se mais ênfase no texto à
preservação das matas nativas, que estão fora de qualquer negociação. O grifo
exigido visa não confundir o eleitorado negacionista e congêneres. Nunca é
demais avisar, com berrantes se for preciso, posto que algum afoito pode
derrubar o que resta, dizendo-se com amparo legal para extração.
O Paraná, afinal, gosta
de deixar o trator desgovernado, fazendo tudo ao contrário do que manda a
inteligência. Basta listar as pelejas dos últimos tempos – como a proposta
insana de diminuir a área da Escarpa Devoniana, nos Campos Gerais; ou a
abertura de estradas na Mata Atlântica e atentados à integridade da Ilha do
Mel, para citar o que mexe com os nervos. Há batalhas antigas, que não saem de
pauta – a engorda da orla de Marinhos e a reabertura da Estrada do Colono, essa
uma péssima ideia, perto de ser sepultada em definitivo. Se assim for, o superlativo
geólogo João José Bigarella (1923-2016) – que teve a extinção da Estrada do
Colono entre suas causas – poderá enfim descansar em paz. Queiram os deuses da
floresta.
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É fato que vão surgir
mais áreas para plantio de araucárias, mas a boa notícia não quer dizer que
ganhamos uma política de preservação ambiental, afinada com os objetivos do
milênio, dotada de um mínimo de benevolência com os agricultores, a quem cabe
receber incentivos pela preservação. O “péra-aí” veio da Comissão de Meio
Ambiente da Assembleia Legislativa do Paraná, presidida pelo deputado Goura,
cujo pedigree ambientalista é conhecido. Pouco mais que um menino, invadiu
espaços da Zona Norte da capital com seus jardins libertários, para citar uma
de suas diabruras sobre duas rodas.
“A gente sabe que o
Paraná é um dos estados que mais desmatam sua vegetação nativa. Conseguimos
devastar quase tudo e assim continua, num ritmo alucinante. Muitos setores do
agronegócio veem as matas nativas como um empecilho para aumentar as áreas de
cultivo. Tem uma pressão forte, muito desmatamento irregular e a espécie
araucária é ameaçada de extinção. A discussão tem de ser profunda. Precisamos
pensar como o Paraná, junto com a sua matriz agrícola, pode financiar grandes
corredores de biodiversidade”, observa Goura.
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Por razões que só lhe
dizem respeito, o deputado teme ser deposto da presidência da comissão no final
do ano. Mas até lá, não esperem o contrário: vai continuar depositando
pedrinhas no sapato dos colegas de trabalho, do governador Ratinho Júnior e sua
turma – não raro afinada com o ministro Ricardo Salles, “Eu esperava que a
pandemia serviria de alerta para a necessidade de ouvir a ciência, mas não é o
que está acontecendo”, alfineta. Goura acusa de tímida a presença de
pesquisadores e de membros dos órgãos representativos em discussões ambientais.
Exemplo? A crise hídrica. As represas estão secas, a paisagem beira a caatinga,
a relação com a natureza precisa ser balizada, mas... nem tchum nos corredores
do poder. Faltam estudiosos à mesa tanto quanto água nos chuveiros.
Quanto à boa notícia de
que os pinheiros podem voltar à paisagem, Goura faz as loas necessárias aos
autores da proposta, mas também coro com o Ministério Público, que pede cautela
em nota técnica. A cobertura de mata de pinheiros vai aumentar se houver
trabalho pesado, junto aos produtores rurais, e ao cidadão comum, morador das
grandes cidades. Pois é – política ambiental se faz à custa de muita força
tarefa. É uma lenha. “Temos vestígios de mata de pinheiros, mas falta
continuidade e práticas expressivas de preservação. O bioma tinha pinheiros,
mas também imbuia, aroeira, erva-mate. Na comissão, começamosa procurar os pesquisadores para fazer
um debate técnico”, observa Goura.
É certo que as futuras
florestas nunca serão como as originais. Mas – como diz Goura, num impulso
filosófico – a físis e o logos podem sair de braço dado e dar
aquele empurrãozinho da razão à natureza, fazendo o dia nascer feliz.
Impossível nessa hora não lembrar do documentário Sal da Terra, de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado. O filme é
sobre a trajetória do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, mas na esteira
dessas glórias, mostra como a fazenda da família dele, em Aimorés, Minas
Gerais, saiu da paisagem lunar em que se encontrava e chegou à exuberância de
matas, aves e águas, no Vale do Rio Doce. Parecia impossível. “Dia desses viram
uma harpia no sul do estado, quando a consideravam extinta por aqui. Sinal de
que ainda há vida no pouco que ficou em pé”, ilustra, sobre o quanto de
inesperado há na preservação.
Em meio ao baixo astral da pandemia, trabalhar pelo retorno dos pinheiros-do-paraná pode ser uma ilusão saudável, um projeto para depois de tudo, uma utopia em prol da sanidade. “Reservo aos especialistas as orientações sobre como podemos fazer parte disso”, avisa o deputado, diante de uma reação possível que vem por aí, na esteira da discussão que ocorre na Assembleia Legislativa. A temporada de pinhões começou e não seria de se espantar se sementes brotadas até em apartamentos tenham de ser deixadas em algum lugar. Onde? Se plantar um pinheiro no quintal pode não ser uma boa ideia – em especial se for no espaço que mal cabe a uma roseira – não seria demais imaginar que as prefeituras poderiam reservar áreas coletivas adequadas para pinheirais, futuros parques quem sabe. Estarão ali para lembrar que somos capazes de produzir dias melhores, apesar de tudo. Eis o desejo.