José Carlos Fernandes

Sonhos em tempo de pandemia

José Carlos Fernandes
21/06/2020 11:00
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Desde meados do mês de março, incontáveis reportagens se ocupam de mostrar que a pandemia causa um mal danado ao sono dos brasileiros. Tem mais gente dormindo mal. Dormindo muito. Dormindo pouco. Tem mais gente às voltas com pesadelos – cuja fonte é o medo de ficar doente, perder alguém ou ficar desempregado. E rola muito sonho – sonho maluco, sonho narrado no café da manhã. Sim, por tabela, há mais pessoas contando seus sonhos para os poucos com quem ainda podem conversar olho no olho – pois sonho não é conversa que funcione no zap-zap.
De minha parte, há muito
desisti de interpretar o significado dos sonhos. Passei por todas as fases
desse misto de arte, ocultismo e ciência e não fiz carreira em nenhuma delas.
Decifrar sonhos é para os fortes, sábios e delirantes de almas elevadas. O
século 20 nasceu da desobediência estética de Nijinski, Picasso, Modigliani,
Duchamp, mas sobretudo de Freud e seu “livro dos sonhos”, publicado nos fins de
1899, com data de 1900, dando início a tudo o que está aí, permitam o exagero.
Como se sabe, nada mais foi como antes. De lá para cá, muitos como você e eu,
deixaram a cadernetinha do lado da cama, para escrever o que sonhamos e, assim
que pulamos da cama, correr contar ao analista ou ao bicheiro – a depender o
grau de desespero.
Claro, a consciência histórica
de que interpretar os sonhos exige ciência não impede de compartilhar os sonhos,
com a empolgação de quem narra a nova temporada da série preferida. E sempre
existe alguém que nos ame o bastante para aceitar essa confidência que só não é
mais enfadonha do que fofocar picuinhas do mundo de trabalho.
“Você não acredita com o
que sonhei...” é quase sempre a senha para um ritual que só se completa quando
aquele que ouve cumpre sua parte no roteiro: arrisca explicar por que diabos a
gente sonhou... com o que sonhou. Tudo começa na base aristotélica da causa e
efeito, ato e potência e termina com os pirados jogos de montar usados num
daqueles filmes porretas estrelados pela Naomi Watts ou pelo Leonardo Di Caprio.
É um vale tudo, como um vale-tudo em geral são os sonhos, que nos transformam
em membros da realeza europeia ou em vizinhos de condomínio do Caetano Veloso –
na melhor das hipóteses.
Se me permitem, tive uma
fase da vida em que sonhava estar voando. Voava que era uma beleza, com uma
técnica de fazer inveja ao João Gibão da novela Saramambaia. Era só sair no arranque, feito um cavalo. Lá em cima,
para além dos horrendos fios de luz das cidades brasileiras, virava o primeiro
bailarino do Teatro Municipal. Nunca caí. E tudo era tão verossímil que
acordava, tomava banho, café, seguia para o batente e feito bobo carregava a
sensação de que tinha voado de verdade, o que melhorava meu humor e, suspeito,
afugentava crises esporádicas de labirintite. O mesmo hiper-realismo, pena,
acompanhava os pesadelos, cujo impacto costuma ser tamanho. Muitas horas são
necessárias para se livrar dos efeitos do sonho ruim. Gente querida morreu.
Matei gente. Virei Joseph K., o personagem de Kafka – acusado pelo que não fiz.
Esse, aliás, o pesadelo mais recorrente. Menos mal, nunca virei um gigantesco
inseto – ou pelo menos ainda não dei conta disso.
A categoria
sonho-pesadelo mais repetida ao longo da vida foram as casas. Cheguei a
contá-las: nove no total. Nunca morei de fato numa delas, embora uma ficasse
milagrosamente enfiada entre a parede da residência dos meus pais e o
apartamento onde morei por mais de dez anos. Outra era linda, modernista,
repleta de cortinas, e ficava atrás de um ferro velho. Resplandecia num quintal
malcuidado. A que mais amava estava em Ribeirão Preto, cidade do interior de
São Paulo onde morei na mocidade. Era quase uma cabana em cima da árvore e quem
volta e meia me fazia companhia na cozinha, vejam só, era o curitibano Poty
Lazzarotto. Um dia – e isso é real – o Poty me disse, ao telefone: “Você não
sabe nada da vida”. Vai ver, é por isso que me visita em sonhos – para me
lembrar da ignorância que carrego.
Pois as casas sumiram por
um bom tempo. Aconteceu antes mesmo que dois terapeutas, cujo divã aluguei,
conseguissem me explicar o sentido desse Minha Casa, Minha Vida onírico, que
substituiu a sequência anterior – a dos voos, bem mais prazerosa. Nas moradias
eu encontrava Poty, mas tinha a sensação de que quem cruzaria a porta do quarto
era mesmo o Norman Bates. Foi boa a pausa da maratona pelas nove casas – qual
uma diarista – mas com a pandemia, elas voltaram. Não são sempre as mesmas do
passado. E sei que não estou sozinho nesse enigma. As matérias que tenho lido
sobre o sono ora escasso ora excessivo durante a pandemia deixam transparecer
que estamos mais sonhadores – e não propriamente no sentido poético do termo.
A situação toda faz
lembrar que o sonho é um assunto da psicologia, mas também da antropologia e da
sociologia. Bom, se você acha que o país não precisa de sociólogos e antropólogos,
pode ir catar coquinho no asfalto ou arrotar perdigotos nas redes sociais. O
fato é que no início dos anos 1940, Florestan Fernandes – um sociólogo – fez um
belíssimo estudo sobre o que sonhavam os paulistanos. Sua investigação pioneira
mostrou que para o homem e a mulher comuns não havia distinção entre o que se
sonhou e a interpretação do que foi sonhado. Pacote completo.
Sonho sem interpretação
era papo furado. Contar a “viagem” a bordo do travesseiro implicava em deduzir
o que queria dizer. Para tanto, não havia necessidade de recorrer a Freud, mas
ao palpite de vizinhos, amigos, parentes, cônjuges, que utilizavam de
representações coletivas para cumprir a tarefa. Tudo sem frescura. Sonhar
equivalia a enigma, premonição, mistério e, com um pouco de sorte – um bilhete
premiado, uma conquista amorosa. Lembrar de Florestan em meio ao grande
pesadelo pandêmico e político em que nos metemos é de alguma maneira tirar do
baú os intérpretes de sonhos que encontramos ao longo da vida. Foi um deles que
me disse que voar em sonhos era desejo de ver os problemas do alto – até hoje a
melhor explicação que encontrei.
Calculo que o fenômeno
sociológico de interpretar os sonhos com a ajuda das pessoas próximas encontrou
variações para o tema. Os mais antigos lembram dos manuais de interpretação dos
sonhos vendidos nas bancas de revista – depois substituídos pelos sites
especializados. E pelos sites francamente canastrões. De qualquer modo, a gente
sonha sozinho, mas precisa dos outros para decifrar o que significava aquela
galinha que carregávamos embaixo do braço, indo pro serviço de “Juvevê-Água
Verde”, tal e qual no filme Se beber, não
cas
e.
Em 1995 – ano da morte de Florestan Fernandes –, outro sociólogo de fina-cepa, José de Souza Martins, da USP, organizou um grupo de alunos e recolheu depoimentos de 180 pessoas. Os entrevistados não só contaram com o que sonhavam como foram provocados a explicar o sentido do que sonharam. A conversa acabava por revelar visões de mundo e a maneira como aquelas pessoas “resolviam” os impasses da vida. A quem interessar possa, parte da experiência está relatada no delicioso livro A sociabilidade do homem simples, publicado por Martins nos anos 2000.
Em vez de medo, no sonho temos coragem. De voar. De entrar em uma dezena de casas...
O sonho, em resumo, faz
parte dos métodos de sobrevivência na selva. Sonhamos para nos defender.
Sonhamos para achar uma saída. O que as pessoas sonham em comum é um documento
tanto sobre o que nos apavora socialmente – uma verdadeira bom-relógio – tanto
quanto sobre as artimanhas que estamos utilizando para desarmá-la. Sonho, diz
José de Souza Martins, não é mera deformação da realidade, “liberada”, qual um
pum, enquanto dormimos (grifo meu, rs), mas razão, imaginação, criatividade e
desejo que não se submetem à rédea curta do cotidiano. Em vez de medo, no sonho
temos coragem. De voar. De entrar numa dezena de casas. De ter uma galinha de
estimação. Os sonhos – em linguagem cifrada – denunciam o quanto nos
conformamos em viver num chiqueirinho.
Claro, a questão é muito
mais sofisticada do que posso fazer parecer. Grupos sociais diferentes sonham
de maneira diversa. Há sonhos que se repetem vida afora. E sonhos da hora. As
possibilidades são tantas e tamanhas que, não causa espanto, poucos se
aventuram cruzar esta floresta cercada de bárbaros. Martins sugere que houvesse
hospitais do sonho, para recolher e analisar essas narrativas cujo saldo,
dolorido, costuma ser o contrário do que a palavra diz: sonhos são expressão do
nosso desencanto com o dia a dia. Os sonhadores de Martins – há 15 anos –
estavam apreensivos com o mundo, como mostra o estudo. Estavam presos a suas
casas, parentes e se sentiam espremidos entre paredes.
Que vontade danada saber o que os brasileiros sonham em comum em 2020. Se descobríssemos, teríamos um documento retumbante sobre o que nos aflige, mas também sobre o que planejamos, em conluio com nossos lençóis, para sair dessa para melhor. Eis o plano.