Crônica

José Carlos Fernandes

Uni-duni-tê – Teca & Jussara, uma amizade

José Carlos Fernandes
13/08/2021 18:39
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Teca e Jussara agora dividem espaço de Yara Martins, na Praça Espanha.

“Eu preciso de você”. Com essa frase, a artista plástica Estela Sandrini, a Teca, rompeu um demorado hiato de silêncio com Jussara Age, sua colega de ofício. Eram amigas, a mão e a luva, mas tinham passado pouco mais de uma década sem trocar palavra, movidas por questões paralelas. O tempo, contudo, é um moleque insuportável, à prova de palmadas. A Jussara que recebia aquela declaração “vinda do nada” tinha se tornado bem diferente daquela que Teca entregou ao passado. Trilha sonora? Adriana Calcanhotto – “Nada ficou no lugar…”
A vida lhe tinha reservado uma maratona de rasteiras. São de abalar a fé. Os deuses saíram de férias e Age amargou perdas familiares em série, justo quando estava cercada de enroscadas profissionais por todos os lados. Viu-se solita na ilha das tormentas. Sim, ela conhece o poema “A arte de perder”, de Elisabeth Bishop, mas os versos não lhe sopraram a ferida (“Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios e mais um continente. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério”). Quando recebeu o telefonema, habitava o fundo da cama, entregue ao “demônio do meio-dia”, a depressão. Mas sabe-se lá por que diabos, levantou-se, passou um batom e marcou um encontro. “Eu achava que ninguém mais precisava de mim”, resume.
Jussara e Teca não lembram com exatidão o momento em que se conheceram. Sabem que foi na década de 1980, no Centro de Criatividade do Parque São Lourenço – hoje, Memorial Paranista, dedicado às esculturas de João Turin. À época, Teca era uma artista conceituada, ex-aluna de Guido Viaro, egressa da geração 60, aquela que deu ao cenário cultural paranaense nomes como Fernando Calderari e João Osório Brzezinski. Jussara, dez anos mais jovem, vinha de uma linhagem já vacinada contra o romantismo da profissão. Seu olhar estava voltado para o futuro e para o exterior. Empreendedora, criou um dos primeiros escritórios de arte da capital paranaense, o Imagem Três. Alta, inteligente, elegante e bonita, pontificava o rol das mulheres mais interessantes de sua geração. Deve ter fechado o trânsito da Avenida Mateus Leme naquele dia.
Como dizia Vinicius de Moraes, amigo a gente não faz, identifica quando o encontra por aí. Foi o caso. Com passagem comprada para Baltimore, nos Estados Unidos, para acompanhar o marido, o festejado endocrinologista Rômolo Sandrini, Teca precisava vender trabalhos e “fazer uns trocos”. A América não dá mole aos forasteiros, que devem se munir dos melhores papeis, telas e tintas. Lembrou-se de Jussara e de sua sócia, Márcia Arruda. Firmaram parceria.
A simpatia oceânica de Teca e o traquejo de Jussara para os negócios renderam um case de sucesso, quando nem se falava disso. A exposição que fizeram à época atraiu tanta gente que foi preciso invadir com tendas a Rua Augusto Stresser, então endereço do Imagem Três. “Veio até ex-governador”, lembra Jussara, ao citar a presença luxuosa de Ney Braga, o “tio Ney”, como diz Teca, sobre a figura mais famosa de sua estirpe lapiana.
Pois Teca se mudou para a América, voltou dois anos depois, e a amizade com Age só fez crescer. Até que… chuvas e trovoadas em CWB. Quando tentam explicar quando e por que o sangue ferveu, parecem uma orquestra de dispositivos eletrônico no modo aceleração. A amizade azedou. E de tal maneira que se perguntassem a uma e a outra o que fariam caso se encontrassem na calçada, viria a mesma resposta: “Atravessaria a rua”. Passaram a se desprezar com requintes típicos das colegiais mimadas.
Não fosse uma amiga comum, Guita Soifer, artista como elas, alimentariam o animal faminto do ressentimento por mais uma década. “Você tem de visitar a Jussara”, disse Soifer a Teca, mais de uma vez. “Ela está precisando”. Guita é a mãe judia – não pede, decreta. Ao obedecer, Sandrini inverteu a prosa.
Sem perceber, colocou, na prática, os ditos do filósofo Étienne de La Boétie, do século 16: a amizade é a coragem de estar juntos; uma união criativa contra a tirania; um sentimento que nos salva da servidão. E saiu-se com a frase que mudou tudo: “Jussara, eu preciso de você”. Não estava mentindo.
Teca Sandrini, 77 anos, sofre de uma enfermidade de visão congênita, ou algo que valha. Seu estágio de capacidade visual beira os 5%. O que lhe acomete, é raro: tem visão periférica; no centro das coisas enxerga uma mancha branca, marca que se tornou onipresente em suas telas. Para saber onde pisa ou com quem fala, faz varreduras à direita e à esquerda. Faça o teste e imagine. O problema é antigo, mas se agravou com a idade. Desde que foi diagnosticada, a artista chamou a limitação para o ringue, movida a teimosia.
Por sete anos, por exemplo, dirigiu o Museu Oscar Niemeyer, o MON. Ao encerrar o expediente, não sem um copo até aqui de mágoas, sentiu ganas de mostrar que ainda podia produzir arte, pois para isso tinha nascido. Mas tinha de admitir que não conseguia mais produzir as cores de sua palheta. Quem é do ramo, sabe o que isso significa – equivale a estar a dez passos do fim da linha.
No meio do caminho, contudo, havia Jussara – ela mesma, a dona de gestos largos, dada a incluir nas telas trechos de “As flores do mal”, de Baudelaire, e uma colorista que parece saída de uma academia do barroco italiano, tamanha habilidade para os pigmentos. A ex-amiga de Teca, que ironia, tinha a visão e a habilidade que lhe foram sonegadas. Poderia dividir com ela o que tinha. Propôs-lhe um consórcio. Juntas outra vez, poderiam retomar a pintura. Reuniram os pincéis no ateliê que Sandrini mantém em casa, no Tarumã (agora dividem espaço de Yara Martins, na Praça Espanha). Ao mesmo tempo, entenderam-se amigas outra vez e para sempre.
No primeiro ano, falaram, falaram e falaram sobre as fogueiras que pularam para chegar até ali. Depois deram de rir das desgraças. De vez em quando, Age ainda sucumbe, mas não encontra folga para se isolar. “Jussara, venha correndo aqui. Aquele quadro que você fez está horrível, precisa mexer”, provoca Teca. Quem, afinal, quer deixar uma tela em pandarecos antes de partir. Se a estratégia não funciona, repete um truque endiabrado que lembra a multiartista francesa Sophie Calle, autora da mostra “Cuide de você”.
E manda o recado: “Jussara, eu preciso de você”. Não há registros de negativas. “A Teca não me deixa morrer sossegada. Quando diz que precisa de mim, saio do túmulo. O ânimo de vida dela me faz bem”.
No ateliê, ambas a postos, dá para ouvir frases assim: “Teca, está aqui o vermelho mais frio que você pediu”. E Age espia de longe o tal vermelho ganhar a tela. “Chego a acreditar que ela ainda enxerga”, emociona-se, e confessa-se confortada por fazer parte desse milagre. Bom, se Jussara & Teca não podem dizer que foram felizes para sempre, pelo menos fazem valer a máxima do poeta alemão Rainer Maria Rilke: “A vida tem sempre razão, afinal…”.
Em tempo: Teca Sandrini está com uma exposição aberta no Museu Metropolitano de Arte, o MuMa. Em breve, abre outra mostra no Espaço Cultural BRDE – Palacete dos Leões, na qual traduz os anos que acompanhou a doença degenerativa que tirou a vida de seu marido, Rômolo Sandrini, em 2018.