• Carregando...
Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Tempos atrás, sugeri à jornalista Marleth Silva – autora do bem-sucedido ensaio Quem vai cuidar de nossos pais?, sobre o amor filial – que escrevesse a respeito de outros dois tipos de afeto: o amor entre amigos e o amor entre irmãos. A inspiração, na época, foi a súbita lembrança que tive de um livro lido na juventude, hoje pouco citado: A arte de amar, de Erich Fromm, espécie de tratado filosófico-psicanalítico sobre o que caracteriza cada tipo de bem querer. Devora-se numa sentada. Está disponível na rede.

Nos “verdes anos”, a leitura de Fromm me causou um efeito terapêutico – como um choque na ponta dos dedos. Estava em transe emocional, como se cada novo fio de barba viesse acompanhado de uma convulsão, seguida de babas. O texto ajudou a organizar os sentimentos em estado de baticum ziriguidum. Óbvio, nunca mais esqueci A arte de amar, um livro Florais de Bach.

Com o tempo, percebi que o autor se tornou cada vez menos citado nos círculos acadêmicos. Fui às fontes para saber qual era o parangolé. “Não passa de um existencialista cristão”, ouvi de um estudioso entediado, que argumentou o baixo teor intelectual da obra de Fromm (que, por ironia, era de origem judaica). A crítica vinha acompanhada de um desdém para com o existencialismo em geral, visto mais como literatura que como pensamento merecedor dos melhores neurônios. Acrescente-se o pouco caso com um sujeito que ousou peitar alguns dogmas da psicanálise.

Fiquei com a impressão de que Fromm tinha ido parar no mesmo balaio dos autores de autoajuda. A única diferença é que tinha mais verniz. E que discutir o que escreveu não abrilhantava a biografia intelectual de ninguém. Hoje entendo que o que ouvi foi uma frase de efeito, nada mais. A história se encarregou de reservar um lugar para o autor, ninguém tasca. Alvo do nazismo, exilado nos Estados Unidos, deixou para a humanidade a contribuição da obra O medo e a liberdade, seu quinhão para explicar por que diabos as pessoas se entregaram ao fascismo, feito tapados. Minha aposta é que será resgatado dos sebos em 2019, um ano que provoca calafrios.

Quanto ao livreto A arte de amar, convém lembrar que é fonte recorrente na extensa produção filosófica e sociológica sobre o amor. O tema permanece em alta, com incríveis contribuições recentes de bambas como Luc Ferry, Alain Badiou, Zygmunt Bauman, Comte-Sponville, Pascal Bruckner e, debaixo de narizes torcidos, Alain de Botton – que salva mentes da pira total, graças a seu incrível portal Escola da Vida. No mais, tem aquela frase porreta do poeta britânico W. H. Auden: “Alguns livros são injustamente esquecidos; nenhum livro é injustamente lembrado”.

O motivo para lembrar de A arte de amar, tanto tempo depois de ser implodido, foi um drama familiar. Há cinco anos, uma das minhas manas ficou com um pé na cova e outro na casca de banana. De repente, a gente se sente parte de algum seriado médico, ouvindo um solene “preparem-se”, vindo de desconhecido de jaleco branco. É a treva. Não aconteceu o pior, graças aos deuses todos para os quais implorei de joelhos. Mas deu para sentir o estampido da bomba. Nunca mais se é o mesmo.

Até então, nunca tinha pensado com afinco sobre o amor entre irmãos. O próprio Fromm, a referência que tinha, não é tão preciso ao descrever o amor fraterno como é no discurso sobre o amor erótico, para o qual não falta munição. O mesmo se dá ao discorrer sobre a incondicionalidade do amor materno e a condicionalidade do amor paterno – o tal do “eu te amo se você for o que eu quiser que você seja”.

Mais de uma vez amigos e conhecidos tinham dado sinais de que queriam falar do assunto, mas talvez não soubessem muito bem como fazê-lo. Lembrava de relatos de quem passou pela experiência da perda de um irmão, ouvidos aqui e ali – incluindo o texto de um aluno, o hoje jornalista João Paulo Pimentel, que produziu um relato memorável sobre o dia em que seu irmão morreu. Mas era coisa da vida dos outros. Assim que bateu na minha porta, passei a ficar atento aos sinais. Entendi que amor de irmãos é história não contada, daí o pedido a Marleth Silva. E que era um sentimento sofisticado. Uma fonte me dizia – “gosto de falar com você, pois tem o mesmo jeito do meu irmão que se foi”. O irmão era o – literalmente – grande Ariel Coelho, ator dos mais incríveis que o Paraná já teve, morto de forma prematura em 1999. Não vejo a semelhança. Mas sei que os irmãos enxergam em 360 graus. Ninguém nos vê melhor que eles.

Mesmo assim, chutaria dizer que o amor entre irmãos é visto como um afeto de baixa voltagem, assim como o amor entre amigos. É verdade que o tema ocupa filósofos desde a Idade Antiga – a exemplo de Aristóteles, que traçou camadas geológicas para dissecar os diversos tipos de amizade. Ou o moderno Montaigne, na sua insuperável consideração sobre La Boetie, o amigo morto, o que quase o levou junto, tamanha paixão nutriam um pelo outro. Não falta matéria-prima a quem interessar possa. Falta é pensar no sentido desses amores nesses idos do século 21, quando o ódio e a intolerância deram de dançar juntos.

***

A possibilidade da perda de um irmão lembra aquela brincadeira de criança – um roda o outro, com o outro de olhos fechados. Roda mais e mais forte. Quando o rodopio cessa, alguém grita “abre o olho”. Quem abre cai de bunda. O mundo em volta balança, ganha molejo, leva à queda. A perda de um irmão provoca vertigem. O irmão pisa o mesmo chão que a gente. Sabe das brincadeiras escondidas. Sabe quando soltamos uma mentirinha. Diria que é mais fácil fingir para os pais do que para um mano ou mana. É como se tivessem uma radiografia panorâmica da gente. E, se não sabem tudo sobre nós, entendem de que barro somos feitos. Irmãos são oniscientes, onipresentes. Enganá-los, nem a pau.

Semana passada, quando o Brasil perdeu a cantora Miúcha, as redes sociais tiraram do sótão a canção Maninha, que ela interpretava em dueto com Chico Buarque. “Se lembra da fogueira?”… Linda, a letra fala de jaqueiras, jardins, roupa no varal, do “sonho que você contou pra mim”. Na rabeira dessas imagens tiradas dos nossos quintais, na qual irmãos correm suados e sem os dentes da frente, paira o mistério de algum adulto que passou por ali, espalhando erva daninha onde antes havia poesia. Os irmãos são sócios das nossas memórias, o que inclui as piores. Quando se vão, metade de nós vai junto. Suspeito que, por causa do mito bíblico de Caim e Abel, a dimensão trágica do amor fraterno tenha se sobreposto ao que há de brincante nessa relação.

Quanto à amizade, foi mais contemplada com dizeres e saberes. Vinícius de Moraes – além de dedicar tempo às mulheres, casando-se nove vezes – empenhava-se na arte da amizade. Conta-se que era amigo exclusivista e ciumento, capaz de chantagens emocionais dignas dos amantes mais pegajosos. Em vez de morrer de amor, falava em morrer de amizade. Dizia que era doença contagiosa e incurável. Dedicou a ela sonetos e pensatas. Chegou a uma quase teoria sobre o assunto: dizia que ninguém “faz amigo”. Amigo a gente bota o olho e reconhece, como se fosse um destino, uma sombra do Mundo das Ideias que se materializa. Faz sentido. Quem nunca se tornou amigo de uma vida inteira – e até de outras vidas – num estalar de dedos?

A visão de Vinícius é um pensamento mágico, convenhamos, mas combina. Porque a amizade é um dos sentimentos mais tolerantes de que se tem notícia. Repare. Há amigos nada a ver um com o outro. Amigos de idades, credos e ideologias muito diferentes. Ainda me espanto com as grandes amizades que acabam, como uma vela. Senti na pele. Do mesmo modo, impressionam as amizades que sobrevivem ao que o tempo faz de nós. É o bom da vida. É rodopiar, mas ter um braço em que se segurar.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]