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Miguel Sanches Neto , escritor. Foto: Aniele Nascimento. Arte: Felipe Lima.
Miguel Sanches Neto , escritor. Foto: Aniele Nascimento. Arte: Felipe Lima.| Foto:

O escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto, 53 anos, paranaense de Bela Vista do Paraíso, no Norte do estado, costuma contar um episódio ocorrido em sua já longa carreira como professor. Numa das muitas vezes em que participou das cúpulas da instituição na qual trabalha – a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), nos Campos Gerais – um colega de ofício costumava saudá-lo com um sonoro “e assim falou o nosso poeta”. A frase era repetida sempre que Sanches dava um parecer – e tinha o efeito de um pé no saco.

O elogio era uma grosseria pretensamente elegante. Equivalia a “e falou aquele que não entende nada”. Nos meios acadêmicos, e em todos os outros a rigor, diz-se que escritores, pintores, músicos e atores, ou “poetas”, para simplificar, não foram talhados para as altas tarefas. Que se limitem ao discurso de formatura. Acima dos imaginativos imperam, com direitos divinos, os homens dos cálculos e das ciências em geral, graças aos quais luzes se acendem, plantinhas brotam e abdomens são abertos com bisturis afiados, para citar três tarefas com as quais Kafka iria se embananar.

Por essa lógica, é possível supor o impacto causado pela chegada de Sanches, em agosto do ano passado, ao posto de reitor da UEPG. Depois de ter sido derrotado, no pleito anterior, por pouco mais de 100 votos, venceu na segunda tentativa – com 60% da comunidade mostrando-se a favor do “poeta”. Ter subido esses degraus é um elefante que incomoda muita gente. A Universidade de Ponta Grossa – centro de um polo regional – tem orçamento de meio bilhão por ano e movimenta 16 mil pessoas num estado em que mais da metade das cidades têm menos do que isso na população. Só o Hospital Universitário mobiliza dois mil servidores, agora liderados por um cara que leva jeito com as palavras. Luxo só.

“Escreveu dois ou três livrinhos e pensa que pode ser reitor”, ouviu Miguel, de um outro par nas cátedras, a certa altura das pelejas, como se dizia. A conta do camarada com dois caninos à mostra estava errada. A produção do escritor supera a casa dos 30 livros – fáceis de encontrar em editoras como a Record e a Intrínseca. O autor tem acento em contos, romances e ensaios mais do que em poesia, é bom que se diga. Seu marco no gênero, penso, é Venho de um país obscuro, obra que tinha entre seus entusiastas a poeta Helena Kolody.

São muitas as glórias literárias de Sanches. O romance autobiográfico Chove sobre minha infância figura entre os clássicos paranaenses, com adoção em vestibulares e capacidade comprovada de ganhar novos leitores a cada estação. A coletânea de contos A bicicleta de carga acaba de ser publicada pela Companhia das Letras, casa do escritor nos últimos anos. O livro se soma a outro marco do gênero: O hóspede secreto, leitura com tutano para deliciar todos os forasteiros que desembarcam em Curitiba. Em tempo, não se deve esquecer que Máquina de madeira – um trabalho ainda subestimado – ganhou tradução para o francês. Cá entre nós, ninguém me tira da cabeça que o personagem central da obra, o padre Azevedo – inventor do protótipo da máquina de escrever, mas ignorado no Brasil –, é alter ego de Sanches. Ele desconversa.

A resistência que sofreu é curiosa. Apontado certa vez, pelo crítico e escritor Mário Sabino, como um dos melhores escritores de sua geração, Sanches Neto seria a melhor das vitrines para qualquer instituição de ensino. Inclusive por ser inspirador: foi criado em família de poucas letras, na minúscula Peabiru, cidade onde encontrou a porta para uma biblioteca pública. Em sentido figurado, nunca mais saiu de lá.

Ele vem mesmo de um país obscuro. Mas, como é um artista, muito o aconselharam procurar outra freguesia. Que se ocupasse de escrever uns livrinhos. Ouviu a recomendação em tons de voz acima e, arrisca, em mais de um idioma. Não acatou. Houve quem se mostrasse preocupado – quatro anos de reitor, como iria escrever? Arguiu que tem “reserva literária”. No mais, os mais próximos sabem que ele se levanta às quatro da manhã para ler, escrever e também correr 8-10 quilômetros. Tem sono curto e disposição rara à maioria dos mortais.

Aqui entre nós, Sanches é conhecidíssimo galo de briga. Os observadores garantem que o tal do temperamento forte está sob controle. Quanto à boa disposição para o embate, necas. É da sua natureza. Difícil levá-lo a nocaute. Nos meios administrativos, inclusive, tende a tirar o chão dos adversários mais experientes – afinal, não é um tecnicista conservador nem um sindicalista. Tem discurso próprio. A um confrade que o acusou de ser preparado demais para o posto, respondeu com ligeireza: “Se me julga preparado, é uma boa razão para eu administrar a universidade.” Em discursos durante a posse, claro, aproveitou para mandar bala no preconceito contra a área artística. Miguel sendo Miguel.

Não é preciso ser muito avançado em números para calcular quantos profissionais da área de Letras e afins chegaram aos mais altos postos universitários. São poucos, à revelia de marcos como o admirável linguista Carlos Alberto Faraco, reitor da Universidade Federal do Paraná de 1990 a 1994. Na imprensa não é diferente. Pelo menos desde a década de 1960, jornalistas ligados à cultura não ocupam postos de liderança em jornais e revistas, mesmo que sejam os que mais conquistam leitores. Basta passar os olhos nos expedientes para saber. É gastar saliva repetir que um gênio das biografias – o jornalista David Remnick – salvou da falência uma das mais importantes revistas literárias da história, a The New Yorker, fundada em 1925 e pródiga em fazer dívidas. Os contadores tiveram de bater palminhas.

Para o crítico literário britânico Terry Eagleton – um doce marxista – o apartheid reservado aos homens e mulheres da cultura é culpa… dos homens e mulheres da cultura. Em mais de um escrito, Eagleton usa a perícia de um anestesista para lembrar que, em especial a partir do final do século 19, escritores e artistas se refestelaram na posição de “diferentes”. Raros, exóticos, boêmios, devassos, indomáveis e sem um puto, ganharam em troco o rótulo de incompatíveis não só para a gestão como para as discussões políticas e econômicas.

O preço, diz o crítico, é a ausência das artes nos grandes debates planetários. A danação é reforçada pelas habituais sandices do Banco Mundial, verdadeira fonte de “febeapás”, dignas dos piores Ernestos. A cultura é para essa turma sempre e sempre um problema de aritmética. Basta listar os grandes problemas da humanidade. Passam pelo aquecimento global, redução da desigualdade, diminuição dos postos de trabalho, controle da contaminação pelo HIV… Enquanto isso, livros à mão permanece assunto para a semana da primavera no pátio do ginásio.

Não é preciso concordar de coro com Eagleton. Pode-se escorar, por exemplo, no pensador francês Edgard Morin, vigilante ao lembrar o perigo a que está sujeita a sociedade tecnocrata. No entender dele, estamos no Juízo Final assim que o narrador capaz de criar significados sai de cena para que reine o operador de tabelas e estatísticas. Vale repetir o clichê de que somos movidos a sentidos – e que nos tornamos caricaturas grotescas na ausência deles.

Quanto ao episódio Miguel Sanches Neto – o profissional da literatura que virou reitor – estamos diante de um laboratório. “É uma vitória não só para mim…”, diz ele. Está uma delícia acompanhar o que acontece nos Campos Gerais. Em pouco mais de seis meses, a UEPG anda nas bocas – e não se está dizendo com isso que não haja descontentes. Quem enfrentou uma reunião de departamento sabe que é mais fácil Jesus voltar à Terra do que haver um encontro cordial de doutores em volta de uma mesa. Mas não deixa de ser uma revanche ver um escritor no posto máximo, a dois passos do governador, pondo pulgas atrás da orelha dos caretas. A experiência só lhe faz bem, garante.

Não é sua primeira vez. No início dos anos 2000, Sanches Neto esteve à frente da Imprensa Oficial do Paraná. Editou 111 livros em dois anos – uma marca nunca alcançada e prova de sua inquestionável capacidade de trabalho. Intelectual e braçal. É operário, não disfarça.

Dia desses, uma amiga lhe perguntou o que aconselharia ao neto dela, que manifestou desejo de ser escritor. Respondeu: que não se afaste do cotidiano da comunidade, que encontrasse uma profissão para viver, pois um ofício é fonte para a experiência literária. Para saber das mesquinharias e safadezas a todo o resto. Camões era soldado. Charles Bukowski, carteiro. Euclides da Cunha, engenheiro “e as pontes que fazia não caíam”. Moacyr Scliar, médico sanitarista. Nuno Ramos trabalhava na Suzano, indústria de papéis, mesmo quando famoso. “Essa ideia do artista preso à torre de marfim é uma construção romântica”, avisa, sem mais.

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