José Carlos Fernandes

Um mundo particular

José Carlos Fernandes
10/11/2019 19:00
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“Quem é que vai querer fazer uma tese de doutorado sobre isso?”, brinca o compositor, poeta e prosador Marcelo Brum-Lemos, 49 anos. O “isso” a que ele se refere são seus quatro discos experimentais – incluindo o inclassificável Você?, da última lavra – e o livro de contos Galhos de árvore movendo os dedos, lançado há dois anos pela Editora Blanche, “na base da pressão”. O seleto grupo de admiradores de Brum-Lemos, sua “comunidade”, como gosta de dizer, o colocou na parede para que desovasse os escritos que viviam na poeira das gavetas.
Acatou a súplica – o
que foi uma proeza dos seguidores –, só que com uma condição: que a edição
viesse sem apresentação do autor, elogios de um crítico ou coisa que valha. No
lugar, para zoar, o desenho de duas orelhas. Recado dado: que o leitor
escutasse o que esse “quase desconhecido” tinha a dizer. “Um pedaço de mim se
incomoda com esse lugar discreto. O trabalho tem de aparecer. Outra parte está
feliz por fazer e pronto”, resume, às voltas com a dúvida metódica que lhe
atazana, pero no mucho. Não o
imaginem um artista trágico. Seus cabelos negros permanecem onde estão, lisos,
bem postos, com um cacho desgarrado apenas. A voz é baixa, o raciocínio
preciso, interrompido por goles curtos num café expresso.
Marcelo Brum-Lemos é um daqueles criadores cultuado nas catacumbas. Classifica-se como um “independente”, o que resume a ópera. Surgiu na cena local há pouco mais de 20 anos, sem fazer alarde, fiel à sua natureza. E de fato os ouvidos mais atentos não falharam. Para quem acompanha o melhor da música contemporânea produzida na capital paranaense, citá-lo é um ritual. As menções que lhe fazem são resenhas vivas, que o colocam no Panteão dos experimentalistas. E por experimentalismo se entenda, também, “coragem”. O que ele faz não vai tocar no rádio, como se dizia, mas o alinha a uma turma que pertence à eternidade: Egberto Gismonti, Tom Zé, Jorge Mautner, Luiz Tatit e o grupo Rumo...
A vida comportada de Marcelo Brum-Lemos rouba algumas experiências bacanas, que por certo apimentariam a produção. Mas lhe trouxe uma compensação: prima o contato com a juventude
A carreira silenciosa
de Marcelo Brum-Lemos começou num lugar bem perto: sua casa. Filho de militar,
rodou o país até chegar a Curitiba. Nasceu em Bragança Paulista, interior de
São Paulo, meio que por acaso, numa das andanças da família. Viveu em
Florianópolis; em Jaguariaíva, nos Campos Gerais; São João Del Rey, em Minas; e
alguns períodos no Rio Grande do Sul, estado de origem de sua turma. Teve avô
que tocava rabeca em Folia de Reis e tio de grupo nativista. Mas teve sobretudo
a irmã mais velha, Maria Alzira Lemos, aquela que curtiu os anos 1970 – quando
ninguém era de ninguém. Alzira, que hoje é tradutora e vive no México,
apresentou-lhe de tudo, o que inclui Beatles, paixão mainstream confessa de Brum, Pink Floyd e Paulo Leminski.
Quando os Brum-Lemos decidiram sossegar no Paraná, a excitação de Marcelo estava armada. Tal qual o personagem de Wagner Moura em Praia do Futuro, encontra a tal da paisagem interior. Era daqui, mesmo sem ser no registro. E hoje, precisamente, do Alto da XV, onde mora com a mulher e os dois filhos pequenos. Dali sai para dar aulas no Colégio Bom Jesus e na FAE, ir à padaria, ao supermercado, garantindo espaços para paradas diante do computador. Junta versos, que viram músicas que volta e meia apresenta a sua banda, a Som de Brinquedo. Chama a turma que o conhece para ouvir. A turma leva cinco novos ouvintes. Os que gostam voltam na próxima. “É um público pescado”, diverte-se. Assim segue – ansiedade mínima, que é para não causar ruído na voltagem criativa.
Ralou um pouco, é verdade. A primeira escolha de Marcelo Brum-Lemos foi pela Arquitetura e Urbanismo, que fez sua cabeça até que lhe caísse nas mãos a obra de Kafka – “aquela linguagem burocrática, transmitindo um mundo nonsense. Meio mágico”, resume. Com folga, é sua referência onipresente, ainda que tenha entre seus amigos imaginários Guimarães Rosa e Valêncio Xavier, que chama para brincar em seus trabalhos. Galhos de árvore movendo os dedos, a propósito, encerra com uma revisita a O artista da fome, metáfora mais que perfeita de Kafka para traduzir o lugar em que gravitam criadores do naipe de Marcelo. O que esperam do público? Que sumam com suas migalhas, que não se admirem com o jejum a que estão submetidos.
Em miúdos, o encontro juvenil com o escritor tcheco – “na forma e no conteúdo”, como frisa – foi o empurrão que faltava para abandonar a Arquitetura e desembarcar no curso de Letras da UFPR e dali para as salas de aula, das quais nunca mais se furtou. O compositor e poeta refinado Marcelo Brum-Lemos faz chamada, fecha notas, corrige redações e apresenta à garotada, todos os anos, os textos e contextos da literatura. Dias atrás, mediou um encontro da galera do ensino médio do Bom Jesus com o escritor amazonense Milton Hatoum. Não declara abertamente, mas se viu diante de um espelho: estava cara a cara com um outro artista da fome, desses que habitam o silêncio dos quartos, arte na surdina. “O desejo dele era estar em casa, escrevendo”.
A sina de artistas como Marcelo – que produzem alta cultura, sem concessões, pois do contrário estariam mentindo para o público – ganha um lado B. Curioso. Tinha duas opções: a vida louca, que abastece os miolos desde que os doidivanas do fim do século 19 decretaram que fazer arte exige sentir a vertigem na beira do abismo; ou a vida comportada, com contas pagas, afetos em dia, e alguma estabilidade para produzir. Ficou com a segunda, para surpresa geral dos que, ao ouvi-lo, o julgam abraçado a uma garrafa de destilado, largado no mundo, aloprado pelo ceticismo. “Kafka vendia seguros”, brinca.
O encontro juvenil com o Kafka – “na forma e no conteúdo”, como frisa – foi o empurrão que faltava para Marcelo abandonar a Arquitetura e desembarcar no curso de Letras
A vida comportada –
admite – rouba algumas experiências bacanas, que por certo apimentariam a
produção. Mas lhe trouxe uma compensação: prima o contato com a juventude. Ainda
que um cético sem disfarces, o professor Marcelo tem seu lado entusiasta. Vai na
contramão dos que dizem que as novas gerações estão condenadas à musiquinha que
encontraram na internet, compartilhada num reduzidíssimo grupo de amigos que
pensa, age e se veste igual. Vê similaridades entre os consumidores de hoje em
dia e o dos tempos do single e da
fita cassete gravada, com uma seleção de músicas. Ambos chegavam devagarinho,
como coiotes, faziam escolhas e saltavam adiante, cumprindo o destino da
cultura. “Os jovens estão abertos ao que não conhecem. E partilham o que
descobrem. É um grupo amigável, aberto às novidades”, decreta o autor de contos
cheios de eletricidade, versos desformatados. Brum é do tipo que nos rodopia. É
brincante, mas nos deixa tontos a tirar as coisas do lugar.
Basta zapear na
internet para concordar com tese da “gurizada topa”. Muitos dos resenhistas
mais arrojados de Marcelo Brum-Lemos são seus alunos e ex-alunos. Eles o
referendam não só como o professor que sabe das coisas, mas como o professor
que sabe fazer. Alguns se agregam a seu público de uma vez por todas, e la nave va. Essa troca chega a ser uma
tradição. Paulo Leminski “fez amigos e influenciou pessoas” – para repetir o
jargão setentista – na sala de aula. O escritor catarinense Paulo Venturelli –
com folga o caso mais conhecido, depois de sua barulhenta passagem pelos
colégios Sion e Medianeira – é o exemplo de escritor rodeado de estuantes por
todos os lados. Cezar Tridapalli, hoje entregue de vez à literatura, também
marcou os dias no Medianeira. Por aí vai o cordão no qual se alista Brum-Lemos,
um “influenciador analógico”, para citar a expressão criada por Jô Soares. “Sou
provinciano. Meu pai era caipira de Osório (RS). Gosto de sentar e conversar.
Não deixo de ser artista por causa disso”. É verdade.