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Valmor Weiss aos 82-83: o menino é o pai do homem
| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre/ Arquivo Gazeta do Povo. Arte: Felipe Lima

Ouvi do jornalista Laércio Souto Maior que a geração 60-70 – aquela que botou o bloco na rua – estava coberta de razão. Laércio falou com conhecimento de causa. Tudo o que aqueles jovens contestadores profetizaram, aconteceu: o mundo se tornou individualista, consumista, hedonista e violento. Penso que Laércio acrescentaria agora que o planeta se tornou autodestrutivo e meio tonga da mironga do kabuletê, pois deu de negar evidências, chose de lóqui, como se dizia. São cada vez maiores os sinais de que a pandemia de coronavírus tem linha direta com as sucessivas rasteiras ao meio ambiente – expressas particularmente no consumo de animais silvestres e no tráfico de espécies. Mesmo que seja provado o contrário, boa coisa não é.

A fala de Laércio me dá um nó na orelha. Posso ouvi-la ao ler os jornais, ao observar – pateta – o estágio em que estamos. Sentimos pesar pelas chances desperdiçadas – putz, duas guerras mundiais e esse esquecimento que só faz merda. Impossível não pensar nos velhos, em especial aqueles que avisaram, quando jovens, onde morava o perigo. Penso que deve ser barra pesada chegar a um estágio da jornada em que não há mais espaço para grandes viradas e se dar conta de que o que se plantou está sendo pisoteado pelos caretas, pelos vilões de telenovela, pelos pistoleiros do faroeste.

Decidi perguntar “como é que é?” a um velho que tem uma das vidas mais malucas dentre as que já encontrei, em 30 anos ouvindo histórias. O nome dele é Valmor Weiss, “82 para 83 anos”, como gosta de precisar, catarinense de Rio do Sul. Nenhum estatístico ou matemático, nenhum ficcionista ou astrólogo seria capaz de calcular em quantas existências Valmor estagiou; ou quantos sujeitos ele é no seu modelito homem compacto, movido a eletricidade. Como não sou bom em contas, nem sequer me aventurei. Pois asseguro que foram muitas e muitos, o que causa um cadinho de inveja branca, renovada a cada papo com o... empresário, posição que lhe cabe, em vez de aposentado. É o que pretendo sustentar até o final deste escrito.

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Conheci Valmor pessoalmente em 2011, na esteira da publicação de sua biografia autorizada. O livro O prisioneiro da cela 310 – lançado pelo Instituto Memória – vinha com a assinatura de Milton Ivan Heller (1931-2017), um jornalista das antigas, cuja apresentação não se faz em poucas palavras. Pois Valmor e Milton foram contemporâneos na sucursal curitibana do jornal Última Hora, criado por Samuel Wainer em 1951 e marco incontestável da imprensa brasileira. Talvez ostentassem pouco em comum, mas o acaso tem dessas coisas. Fossem personagens do filme Dois papas, também dançariam um tango desajeitado. Seria coisa linda de se ver.

Milton era da casta do jornalista Claudio Abramo (autor do essencial A regra do jogo). Educou-se fora da escola, na boa literatura e nas cartilhas marxistas, à mercê da instabilidade social, emocional e política imposta ao Partido Comunista, esse clandestino crônico. Para um e outro, o jornalismo não era uma profissão, mas um respiradouro, se me permitem. Apesar do sobrenome alemão, Milton cresceu na colônia polonesa, na qual seu pai, Jorge, encarnava todos os arquétipos da rebeldia revolucionária, regurgitada logo no café da manhã. Óbvio, não parava em casa.

O preço das escolhas do patriarca era sempre alto para a família. Mílton menino esteve num orfanato. Milton jovem vendeu tapetes como ambulante no Rio de Janeiro. Milton cassado pelo regime de 64 oferecia livros de porta em porta em Curitiba. Mas não sem antes conhecer o miudinho Valmor, que vinha de um mundo despolitizado, fatalista, hierárquico. Que encontrou na farda do Exército uma oportunidade de não ser tão pobre quanto o destino insistia. Que por uma benesse dos deuses provou da cachaça do jornalismo, a bordo da coluna “Plantão Militar”, na qual pintou e bordou. Que se rebelou e acabou encarcerado por um ano e meio na cela 310 do Presídio do Ahú, debaixo de paulada e cacetada. É constrangedor lhe perguntar sobre a tortura. Foi pelo menos uma para cada Valmor que conhecemos, eis a régua.

O livro que Milton escreveu sobre seu colega de redação tinha tudo para ser um solene baixo-astral. E talvez seja. Mas o biografado não deixa que assim pareça, com seu humor de moleque, em franco contraste com o jeitão severo, casmurro e 100% indignado de Heller. “Faria tudo de novo”, decreta o biografado, sem cerimônia, na semana em que comemora 52 anos de casado com Marlene, a quem chama de “minha italiana”. Eis a prova. Solitos, beberam vinho, comeram fondue. Riram, dançaram e deram gracias a la vida. Este é Weiss, o sujeito que agora vê passar pela janela o que nem ele nem Carolina, a da música, imaginavam que pudesse acontecer. “Dói?”, pergunto. Ele faz uma das únicas pausas em uma longa conversa.

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Há quem diga que a história do Brasil é escrita pela Glória Perez, analogia que dispensa explicações. Acrescente-se que pelo menos a vida de Valmor Weiss parece uma peça ficcional da novelista. Nosso herói foi pobre de Marré Desci. Sua mãe era benzedeira e parteira – e como ele mesmo diz, deu à luz a metade dos demais pobres da cidade, em troca de uma galinha ou coisa que valha. Ela mesma teve 14 filhos – dos quais só Valmor, o caçula está vivo. Mas não lhe peçam para chorar miséria. “Passado dos 80 anos, a infância é o que eu mais lembro, com mais alegria”, avisa, sacudindo a poeira da memória com uma cena de filme, que deu de lhe atazanar os miolos, de uns tempos para cá. Ele se vê com seus amigos, tão pés-rapados quanto ele, abrindo um guarda-chuva e pulando para ver se conseguiam voar. Aconteceu em Rio do Sul. Faz tempo.

É grande a tentação de associar o piá – apelidado de Bugrinho – que pensava ser possível voar de guarda-chuva e o empresário que chegou a ter mais de 2 mil funcionários numa firma de aviação. Valmor concorda – “tem a ver”. Mas voar, no sentido figurado e no estrito da palavra, foi sua especialidade desde cedo. Um dia bateu as tamancas da terrinha e caiu na estrada, mundo afora, sem saber onde ia dormir e o que ia comer, só na fiúza da caridade de estranhos. A trilha sonora dessa época é “Menino da Porteira”, na voz de Luizinho e Limeira, Tonico & Tinoco, Sérgio Reis, tanto faz. Uma de suas paradas foi na pequena Paraíso do Norte, no Noroeste Paranaense, terra do padre Reginaldo Manzotti, do artista plástico Edílson Viriato, mas também onde Weiss ensaiou seus saltos triplos carpados.

Foram muitos saltos – e só o metódico biógrafo Milton Heller para não se perder, que ironia, nessa trama digna de Glória Perez. De cidade em cidade, a rotina de Valmor foi uma sucessão de subempregos – balcões, restaurantes, quitandas e quetais que o ajudaram a não negar fogo, nem vergar, nem se atirar à sarjeta. Num dos capítulos mais luminosos, recebeu do nada uma oferta de empréstimo que o tirou da dureza de ex-preso político para o mundo dos negócios. Parece novela, mas é real. Claro, no meio de tudo isso tem o capítulo em que esse homem talhado para a liberdade, pouco à vontade na farda de sargento, conhece o poder da pena. Como colunista do jornal Última Hora conviveu com algumas das melhores cabeças da imprensa paranaense de então – além de Heller, Adherbal Fortes, Walmor Marcelino, Sylvio Back e Celina Luz, entre outros da constelação.

Não é difícil entender por que faria tudo outra vez.

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Em tempos de pandemia, Valmor Weiss, o guri que queria voar, se sente de novo um prisioneiro da Cela 310. Todas as confusões e canseiras da quarentena lhe dizem respeito. Declara-se estarrecido “com a atitude das pessoas”. Desabafa, dando uma folga para o jeitão alegre. “A vida é o dom maior, o mais importante. Qual é esse negócio de ter de escolher entre Pedro e João? É surreal”. Confessa que chorou ao ver na tevê uma imagem de caixões amontoados. “Você não chora?”

É quando faz sua pausa para calcular a dor – pergunta que lhe fiz logo de cara. Prefere não terminar a conta. Confirma seu gosto de piá desembestado pela liberdade, mas diz que não veio a passeio. Reinventa Simone de Beauvoir – é mais importante fazer o bem do que ser livre. Logo, tem planos para quando findar a pandemia: 1) Comer um filé no Chalé Suíço, em companhia da amada Marlene, pois está mortinho de saudade da iguaria. 2) Depois vai para sua empresa. Quer chamar a turma toda. Contar que está cheio de ideias. Sente comichões por mudanças, como o menino que um dia saiu de casa, para ver o que tinha do lado de lá da cerca.

Eis Valmor Weiss, 82 para 83.

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