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Viajar, um verbo preciso e impreciso
| Foto: Felipe Lima

Uma das maiores incertezas que rondam o mudo pós-Covid diz respeito às viagens. Pode parecer um problema menor, diante do que está em jogo, mas é um problema, que se não for sanado junto com todos os outros cobrará o preço de seu recalque. A viagem, de desejo libertário e existencial, converteu-se em mercadoria. Se não de primeira necessidade, como se pode argumentar, ainda assim um produto dos mais pronunciados nas nossas listas de compras. Inclusive como disfarce.

Em pesquisas de opinião – moeda corrente nas lides jornalísticas – não raro emerge o escapismo, a insatisfação e a insegurança com a família, o trabalho e o país, maquiados em respostas que indicam: vontade de estar em outro lugar, onde quem sabe as coisas não estejam tão fora de ordem. Não causa espanto se todos os desarranjos trazidos pela pandemia acabarem redundando em surtos de disposição em cruzar fronteiras. No senso comum, aliás, é o que se ouve: se puder, fuja.

É uma pena que a experiência de viajar seja reduzida ao pó do consumismo, ou à crença tola de que a vida é “fora daqui”. Resta a alternativa – diante de todas as dificuldades que virão, as financeiras, as sanitárias e as novas exigências de mobilidade – de observar como essa arte será remodelada nos novos tempos. Ouvi dia desses que a Nova Zelândia – país pequeno, isolado e com inteligência aguda no manejo da pandemia – criou um programa de incentivo às pequenas viagens. Enquanto não é possível se acotovelar nos aeroportos e dividir poltronas de aeronaves cada vez mais apertadas, resta explorar municípios vizinhos, muitos deles ignorados, aos quais se chega em poucas horas e em condições mínimas de segurança. Até onde sei, a proposta parece dar certo e deve servir de laboratório para o planeta.

É uma pena que a experiência de viajar seja reduzida ao pó do consumismo, ou à crença tola de que a vida é “fora daqui”

Claro – o modelo neozelandês não vai vingar sem que haja uma reviravolta nas mentalidades. A da indústria do turismo – que, debaixo do chapéu do “entretenimento”, é a terceira maior do mundo, abaixo apenas da indústria bélica e da automobilística – e a dos próprios viajantes. Explico. Quem já viu de perto a máquina do turismo, mesmo que pela fresta da porta, sabe que se trata de um cachorro grande. As cartas estão sempre marcadas, em especial para os chamados “marinheiros de primeira viagem”, os que não dominam idiomas e os iludidos pela crença de que viajar é sinônimo de esbanjar. O viajante acaba indo aonde o levam e pelo preço que lhe é cobrado.

Não raro, o viajante que “compra a viagem” do catálogo se comporta como uma criança mimada – peripécia, me permitam, na qual os brasileiros são pródigos. Vestidos da armadura do consumidor, atazanam recepcionistas, guias e quem mais tiver o azar de cruzar na sua frente a cada vez que algo lhes pareça insatisfatório. Nessas horas, parecem-se à hilária nova rica vivida pela curitibana Katiuscia Canoro, na versão anterior do programa de humor Zorra Total: “Tô pagano”. Sinto vergonha até hoje de um casal de médicos que infernizou a gerência de um hotel de Bordeaux, no Sudoeste da França, por acharem o café da manhã “uma pobreza”. De nada adiantou o profissional lhes dizer que nosso grupo estava saindo às quatro da matina e que as leis trabalhistas francesas impediam que a turma da cozinha trabalhasse àquela hora.

Em miúdos, a indústria de turismo estraga o viajante que, via de regra, está doidinho para ser estragado. Sem falar na “viagem errada”. Uma agente de turismo que conheci – especializada em Portugal – me confidenciou certa vez que tinha vontade de chorar a cada vez que um brasileiro reclamava da Ribeira, na cidade do Porto, paisagem de casario do século 18, às margens do Rio Douro, Patrimônio Mundial da Unesco. Diziam-lhe desaforos assim: “Se fosse para ver favela, ficava no meu país”. Pois é, o Porto não é Miami, o que qualquer panfletinho impresso em couché dá conta de explicar.

De minha parte, acho que a reprovação aos despreparados para certas viagens pode até ser justa, mas tende a ser elitista. O “não gostar” da Ribeira do Porto e a falta de desconfiômetro com a própria ignorância pode ser uma experiência mais rica que a de gostar de um castelo do Vale do Loire. O descontentamento tende a ser parte de um processo de digestão, que resulte numa mudança paulatina de ponto de vista.

Anos atrás, um parente me disse que, em sua primeira ida à Europa, foi ao Louvre, mas intimado pela companheira. Achou um porre. Voltou para casa disposto a uma nova rodada pelo Velho Continente, desde que o passeio não incluísse o maior museu do mundo. Sugeri que da próxima vez fosse ao Museu D’Orsay – menor, passível de ser visitado em poucas horas. Sei que vai encontrar lá obras impressionistas, cuja ilustrações viu nos livros de escola. Será mais palatável. A arte de viajar tem dessas coisas – exige prática e estratégias. No mais, para que condená-lo às trevas: vi muita gente do ramo das artes dizer, baixinho, não ter mais saco para a maratona exigida pelo Louvre.

O “viajar perto” – imperativo da nova ordem – vai exigir do viajante virtudes de explorador. Curtir cafés da manhã modestos, por exemplo. E empenho em enxergar a graça dos espaços que não foram glamourizados pela indústria do turismo. Recomendo um test drive – siga de Curitiba até Campo Largo, aqui do lado, e tome um sorvete feito de xarope de gelatina, desses bem coloridos, ainda vendidos num quiosque, perto do coreto na praça da matriz. Ou, noutra direção, vá até Araucária e procure a casa polonesa mais colorida que puder. Há muitas para escolher. Depois poste nas redes sociais uma bobagem qualquer como: “Gente, Varsóvia tá bem pertinho”. O viajante vê a Polônia em Araucária e similaridades entre o sorvete de Campo Largo e os vendidos na Itália. Deve-se desconfiar dos que não são capazes de fazer essa associação.

Da mesma maneira que o futebolista consegue enxergar um craque num jogo de várzea, o viajante castiço vê a cápsula do mundo em lugares comuns

A maior viajante que conheço é a jornalista Rosy de Sá Cardoso. Em seu apartamento, no centro de Curitiba, conserva um mapa múndi, preso à parede, congestionado com alfinetes, que marcam os países que visitou. Foram 87 ao todo, boa parte deles mais de uma vez. O número só não se multiplicou mais porque Rosy sofre agora os achaques próprios da idade. Mas se pode dizer que foi até o osso. Já tinha dor nas juntas o bastante quando alugou um carro para cruzar as freeways americanas. Em outra ocasião, saracoteou em Las Vegas – um dos lugares que, assegura, ninguém deve morrer sem visitar. Quando lhe peço dicas de hotel, manda sempre o endereço de lugares simples, baratos e – minha tormenta – sem banheiro no quarto. Gaba-se de nunca ter despachado malas, pois leva o mínimo e traz quase nada. Perda de tempo e de juízo torrar cartão de crédito nas magazines. Na redação, quando a víamos chegar com uma malinha de rodas e vestida de “Chokito”, um conjuntinho de malha vermelho malhado, semelhante à embalagem do chocolate, sabíamos que estava em revoada.

Conto sempre que, assim que Rosy teve de diminuir o ritmo, passou a privilegiar viagens curtas – das quais voltava com o mesmo entusiasmo. Certa vez, contou de uma igreja linda que tinha visto em Joinville. E das contínuas redescobertas de Paranaguá, cidade onde passou parte da infância. Da mesma maneira que o futebolista consegue enxergar um craque num jogo de várzea, o viajante castiço vê a cápsula do mundo em lugares comuns. Não substituem a Basílica de São Pedro – como portento histórico e arquitetônico –, mas podem dar conta da experiência da viagem, que é outro babado.

São célebres os ensaios do francês Xavier de Maistre – Viagem à roda do meu quarto e Expedição noturna à roda do meu quarto. Tratam, como se sabe, da viagem literária como algo mais prazeroso do que a viagem propriamente dita. Mas o alerta que o autor do século 18 deixa é perfeita: não se vai a lugar nenhum sem imaginação. Nem a Paris, nem a Campo Largo. Em seu subestimado A arte de viajar, o filósofo suíço Alain de Botton faz as honras a Xavier de Maistre, ao lembrar que, talvez, a primeira viagem seja ao redor do quarto. Na sequência, Botton resume o “viajar” ao que sentimos, num aeroporto, ao ver os anúncios de voo. De repente aparece lá: “Monterrey – 19 horas”. Por um minuto pensamos deixar tudo, mudar de nome, e recomeçar do nada, no México. Viajar nada mais seria do que esse impulso vital de se desvestir, para estranhar-se, ver-se noutra pele, reconhecer-se e voltar para casa.

O resto, bem o resto é estojo de maquiagem.

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A propósito, dicas de leitura. Garimpe na rede os textos sobre viagem do jornalista Zeca Camargo. São um tratado, escritos por um viajante interessado e nunca óbvio. Na mesma pegada, o livro Terramarear, de Ruy Castro e Heloísa Seixas, reúne diários de bordo sobre lugares desprezados, que estão “ao lado” dos standards turísticos. Por fim, o imbatível jornalista e psicanalista norte-americano Andrew Solomon acrescenta um ponto ao gênero “livro sobre viagem” com Lugares distantes – como viajar pode mudar o mundo. Solomon visita fronteiras modificadas por reviravoltas políticas e ambientais e conversa com personagens inesperados de espaços que nunca colocaríamos na nossa listinha de compras. Arrisquem-se.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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