José Carlos Fernandes

Vidas em segredo

José Carlos Fernandes
27/09/2020 19:00
Thumbnail
Permitam-me um episódio doméstico. Meu avô materno –
José – gostava de contar para a netarada que era o operário da Matte Leão, na
década de 1950, “que mais lixava caixinhas de chá”. Um dia, fizemos as contas
juntos, e ele teria preparado algo como 9 mil embalagens de luxo, num curto
espaço de tempo, a maioria, por certo, enviada para o exterior. A empresa
paranaense não tinha fronteiras, como se sabe.
Minha avó – Marta – não raro se irritava com a
insistência dessa contação de histórias. Não disfarçava o quanto lhe pareciam
desimportantes. No mais, o excesso de dedicação às caixinhas – hoje vendidas
como relíquias em mercados de pulgas – tinham rendido ao marido um grave
problema de coluna, que o condenou à aposentadoria precoce, cercada de
limitações. Nunca sabíamos de suas dores, pois, se as relatasse, superariam em
número as caixinhas que lixou para a fábrica. Disso morreu.
Quem arcava com o grosso das despesas daquela família imigrante de nove filhos era ela – talentosa bordadeira de enxovais feitos à mão, por décadas consumidos pela alta sociedade curitibana. Suspeito que conhecia pessoalmente todos os ricos e famosos que ilustravam a coluna do Dino Almeida, na Gazeta do Povo. Baixinha, enérgica, ariana, boa falante, mostrava-se o oposto dele – um homem alto, calado e conformado, dado às parreiras bem cuidadas de seu quintal, no bairro Portão. Quando os tempos de penúria se foram, lembro que ele ficava pasmo diante dos carros dos filhos e netos estacionados na frente da casa – na Rua Frei Gaspar Madre de Deus. Dizia: “Acho que somando tudo, dá um milhão...”. No mais, gostava de repetir uma única frase, que hoje considero um manifesto contra a velocidade moderna: “Filhinho, é uma correria...”
Cada vez mais temos dificuldades em lidar com as “vidas minúsculas”. A ansiedade pela “grande vida” se tornou uma tormenta contemporânea
José e Marta são como o casal do belíssimo conto de
Orígenes Lessa O feijão e o sonho. O
título da obra é autoexplicativo. Mas o avô remete também a um outro personagem
da literatura brasileira, a “agregada” Biela, do romance Uma vida em segredo, do mineiro Autran Dourado. Desculpem aí, mas
quem não leu não viveu (risos). Biela é aquela prima que vem do interior,
trabalhar na cozinha dos parentes. Pode comer na sala, mas dorme no quartinho
dos fundos. E, por não ser empregada de fato, não recebe salário. Não lhe cabe
o motim nem a demissão nem a herança – apenas a gratidão de pertencer a uma
família.
O avô, claro, não parecia a Biela na condição
funcional, mas a criação de Dourado e o cidadão José se assemelham no silêncio
– troco bem dado aos ruidosos. São animais quietos. O que guardam? Para um e
outro, as palavras se tornam cada vez mais um penduricalho dispensável, até
porque não há muito o que dizer num ambiente sem interlocutores. No caso dele, houve
uma agravante: uma surdez severa decretou em definitivo sua condição de homem
sem palavras. O aparelhinho para ouvir – deficitário – equivalia a uma tortura.
Desligava-o, sem remorso. Restava-lhe passar o café e sentar numa cadeira em
meio ao vaivém de parentes e freguesas. Sabíamos que gostava de chocolates, que
levávamos de presente em escala industrial. Escondia num armário, a salvo da
petizada doida por açúcar. Comia-os também em segredo, à noite, depois de dar
cordas num relógio-cuco – verdadeiro inferno para quem pousava por lá. Menos
para ele, que nada ouvia, e dormia o sono dos justos.
Abro esse pequeno baú porque semana passada perdi um parente – meu cunhado Édson Luís Correia Lourenço. Achava-o parecido ao meu avô. Falava pouco, quase nada. O mergulho no silêncio se dava na companhia dos cigarros, dispositivo móvel que abreviou seu expediente. Pouco se cuidava, mas tinha talento para amparar os doentes. Comia feito um passarinho e dava 70% do bife – escondido – aos cachorros. Ria alto das “videocassetadas” do Faustão, a ponto de eu suspeitar que a Globo as mantêm no ar apenas para não contrariar o último freguês. No escritório de arquitetura onde trabalhava como desenhista projetista – um ofício em extinção –, também passava o cafezinho, outra de suas especialidades, e nunca o ouvi dizer que se sentisse diminuído pela tarefa. Desconfio que os silentes fazem os melhores cafés.
No mais, se me perguntassem de seu legado, não
falaria das centenas de plantas de casas e prédios, riscadas à perfeição, mas
das crianças que ensinou a andar. Era sua maior especialidade. Tinha paciência
em conquistar cada passo, em horas de treinos monásticos. Foi num fim de tarde
qualquer que vimos seu filho Pedro andar, com pouco mais de 10 meses. Edson,
sempre tão reservado, explodiu de alegria e suspeito que ainda posso vê-lo
feliz naquela cena, para além do sofrimento psíquico que o castigou sem
refresco, por mais de uma década.
Guardo até hoje o tênis azul que meu sobrinho usava
quando soltou a mão do pai pela primeira vez. Está pendurado na minha estante
de livros, e agora entendo que é uma biografia na forma de objeto – digna de
figurar no Museu da Inocência, do Nobel de Literatura Orhan Pamuk, em Istambul.
Poucos de nós poderemos dizer que demos os primeiros passos a tanta gurizada.
Sua lápide: “Aqui jaz um homem que ensinou xis
crianças a andar”.
***
É fato: cada vez mais temos dificuldades em lidar com as “vidas minúsculas”. Viraram um incômodo, pois Narciso, sabemos, gosta pra diabo de um espelho... A ansiedade pela “grande vida” se tornou uma tormenta contemporânea. Pesa nas costas dos jovens, em particular. Uma lenha a jornada imposta aos millennials e aos pós-millennials. A rapidez com que as novas tecnologias se alternam tem um efeito demolidor sobre essa parcela da população. Alguém que some 18 ou 20 anos vive assaltado pela sensação de impermanência contínua, que os deixará para trás, sem que consiga satisfazer o que se espera deles.
Alguém vai ter de nos ensinar a andar, de volta aos prazeres da pequena vida
Não sou eu quem diz, mas pesquisas de fôlego, como
as conduzidas pela respeitável psicóloga Jean Twenge, da San Diego University.
Ou pensadores do quilate dos franceses Luc Ferry e Giles Lipovetsky – ocupados,
em alguma medida, com a negação coletiva da “vida comum”, não raro alimentada
por discursos liberais esquizofrênicos e criminosos. “Empreender”, “inovar”,
“reinventar-se” – entre outros palavrórios tóxicos disfarçados de palavras da
salvação – são pílulas de ecstasygoela
abaixo, já no café da manhã. Pipocam estudos para dissecar o que esses
conceitos dizem, sem dizer. Nas entrelinhas, informam que não se pode
envelhecer, sossegar, descansar, o que outra coisa não é senão uma negação da
condição humana. Nem vou dizer que isso vai nos matar, pois já está nos
matando.
Penso que prestamos pouca atenção aos alertas do economista britânico Tony Atkinson, morto em 2017. Visionário, arquitetou políticas para garantir o sustento dos jovens numa sociedade sem emprego: táticas planetárias de redução de desigualdade social; apoio a tecnologias que reúnam pessoas, ajudando-as a encontrar sentido para suas rotinas. Pediu um basta a investimentos vultosos em brinquedinhos destinados a marmanjos entediados, como os carros sem motorista, por exemplo.
Em meio ao luto e à pandemia, fico na esperança de que vamos, depois de tudo, prestar mais atenção aos teoremas de Atkinson. Mas sei não... Alguém vai ter de nos ensinar a andar, de volta aos prazeres da pequena vida.