José Carlos Fernandes

Vila das Torres e a dialética dos pneus

José Carlos Fernandes
29/04/2018 21:00
Thumbnail

Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Não há necessidade de estatísticas – Curitiba é o Jardim Botânico (e seus iogues), o Calçadão da XV, o Parque Barigui. É a sede da Polícia Federal no bairro Santa Cândida – em especial desde a chegada do ex-presidente Lula, no 7 de abril, trazendo um espocar de “bons dias” matinais. Bem lindo. Mas CWB é também a Vila das Torres, uma pequena cratera à beira do Rio Belém, emparedada por três instituições de ensino católicas, pela Federação das Indústrias do Paraná (Fiep), por um cartão-postal e pela avenida que leva ao Aeroporto Afonso Pena. Nem o Batel goza de tamanhos predicados.
Se as contas estiverem certas, a comunidade se instalou ali há 65 anos e uma vovozinha. E sua gente – algo como 6,8 mil moradores – tomou muito caldo do Rio Belém em cheias, surra dos governantes e desaforos dos vizinhos que não lhe dão pelotas. Devolveu o pouco caso com bananas, ó. A turma é craque nisso – uma pena ter esquecido de contar quantos pneus queimou na Avenida Comendador Franco, quantas placas ergueu em protesto, quantas vezes virou notícia policial. Sossego não faz parte daquela paisagem.
À revelia dos números assombrosos – algo como ter sido palco de 40 homicídios provocados pelo tráfico, apenas entre julho de 2013 e janeiro de 2015 (de acordo com levantamento do jornalista Diego Ribeiro) –, a vila é o que os urbanistas mais arrojados chamam de “espaço amado”. Creiam. É de 5 em 10, por exemplo, a probabilidade de encontrar uma intercambista estrangeiro andando por lá, louco de contente. Em dezembro passado, conheci uma alemã que prestava voluntariado na ONG Passos da Criança, fundada pelo ex-menino em situação de rua Adílson Pereira. Na área desde guri, só falta ao Adílson o registro de vileiro em cartório. Ele é a tal da prova de que o mundo gira.
Não faz muito tempo, acompanhei à vila um grupo de estudantes de Arquitetura da Universidade de Utah, nos Estados Unidos. Chovia, brotava lama do paralelepípedo, tinha sofá atracado às margens do Belém e cachorro molhado chacoalhando o pelo, sem cerimônia. Mas nada que roubasse o encanto dos visitantes ao descobrir o Clube de Mães, da Irenilda Arruda; ao ver a praça criada no muque pelo José Francisco Sanches, o Baleia; ao ouvir falar dos projetos ambientais do Marcos Eriberto dos Santos, o Marcão. A Torres é assim – um balaio de contradições, na bala e no belo. Não duvidem – nos 199,4 mil metros quadrados da comunidade, há também flores plantadas em pneus.
O grau de atração que o local exerce tem razões práticas. 1. a vila é tão antiga que determinados locais da cidade – na bússola do povo – ficam antes ou depois dela. Um dia pertenceu à mítica Favela do Capanema, lar dos deserdados da Geada Negra de 1975. Não é invisível, ao contrário da maioria das mais de 250 ocupações da capital (com as quais se aparenta, embora não seja mais uma zona 100% informal). 2. Além dos estrangeiros, criativos costumam elegê-la como espaço de seus projetos, a exemplo do designer José Marcos Novak, do cineasta Luciano Coelho e do artista plástico Newton Goto, para citar três. 3. Como nem tudo é perfeito, em seis décadas e cacetadas, uma barca do inferno cheia de políticos se apropriou do local, prometendo sem cumprir. Sim, a vila costuma ser usada nas urnas, embora suas lideranças digam estar vacinadas. 4. Na contramão de comunidades quase tão antigas quanto, a Torres é plural. Em tempos áureos, chegou a somar 20 lideranças, fora a meia dúzia de times de futebol. Nem as contendas entre as duas gangues locais, cujos nomes seguem uma lógica lusitana – a Turma de Baixo e a Turma de Cima –, deixam os moradores trancafiados em seus 1.028 cafofos. Não tem reunião comunitária (sempre na primeira segunda-feira do mês) com menos de dez pessoas. Todas com sangue nas veias. Incluso o padre e o pastor. Não esperem afagos paroquianos. Os males que assolam a comunidade causam afeto, mas sobretudo paixão.
Por ironia, há quem diga que parte do problema da Vila das Torres reside justo no interesse que desperta em gregos e troianos. O local se tornou um fetiche dos bem intencionados, dos iludidos da selfie. Não raro, propostas para que a comunidade dê um basta na violência esbarram no paternalismo ingênuo. Tempos atrás, benfeitores de ocasião teimavam que o local deveria ser congelado pela versão paranaense das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. Recuaram ao se deparar com a resistência das lideranças. Elas batem o pé – a vila tem vez ou outra corpos estendidos no chão, tem guri de arma na mão, mas precisa é de escolas de qualidade, de iluminação pública, de atenção aos profissionais da reciclagem, de ação social continuada junto aos jovens, antes que sejam cooptados pelo tráfico.
Este é o pedido geral da população – é o pedido em especial de um dos atores que labutam por lá, e talvez o que mais entenda do riscado. O filósofo e mestre em Teologia Jardel Neves Lopes, 32 anos, natural da zona rural de Guanambi, no sertão da Bahia, soma uma década de serviços prestados à Vila das Torres. Chegou ainda seminarista da Congregação Marista, então um missionário inspirado pelos ventos fortes da Teologia da Libertação. Gostou da hospitalidade, virou freguês, aprendeu sobre a vila em almoços e cafezinhos, em conversas no portão.
Ao se secularizar, decidiu ficar por perto. Muito perto. Num período de seis meses em que morou dentro da Torres, teve uma espécie de visão beatífica. Entendeu os desejos, os medos, as dinâmicas dos pneus. Sua aproximação com os dramas da infância formaram um capítulo em particular. Hoje lidera a Pastoral Operária da CNBB, mas a vila permanece seu chão. Sobre ela, é capaz de tecer um sem-fim de narrativas – muitas dramáticas – próprias de alguém que veio, viu, mas ainda não venceu, pois essa é a sina de quem atua nos subterrâneos.
“Não tem parada”, diz o homem pequeno, de fala bem posta e raciocínio rápido. Jardel – cujo nome não é homenagem ao ator Jardel Filho, já que não havia nem luz nem televisão na casa sertaneja onde nasceu – explica que, primeiro, todo mundo luta para ter a creche. Depois de conseguir, é preciso brigar para que contratem gente para trabalhar na creche. E se não bastasse, subir nas tamancas para que o atendimento na creche seja de qualidade. Uma lenha. Não bastasse, as conquistas podem desabar num estalar de dedos. O organograma de Jardel – com os nomes das pessoas e instituições que ali trabalham – desmancha-se diante de um estampido. “Não temos como bater de frente com o tráfico. O meio de romper esse ciclo é garantir política pública de acesso”, resume. Exemplo? A briga por reurbanização da Rua Josefina Zanier, que está sendo engolida pelo rio e pela escuridão. Imaginem o que acontece por lá.
O que tem ocorrido em 2018 é uma prova: desde janeiro, cinco jovens foram mortos – três deles em abril. Houve explosões semelhantes em 2013-2014, com soma de seis adolescentes assassinados. É o que basta para que voluntários daqui e dali, iniciativas e parcerias virem poeira – o famoso “bateu barata voa”. Em lugares como a Vila das Torres, o eterno retorno de Nietzsche nada tem de abstração. Causa medo – essa praga. “A gente conhece a família desses rapazes, com quem convivemos desde pequeninos. A gente acredita na transformação e é duro vê-la interrompida. Não tem como ser um mero técnico numa hora dessas”, lamenta.
A resiliência da comunidade é tamanha que o líder a investigou na sua dissertação de mestrado: estudou a Irmandade do Servo Sofredor, um movimento religioso criado no Nordeste e que chegou àquelas rebarbas do Prado Velho. Na surdina, lá, há quem se reúna para rezar e também entender a morte e a dor que rondam ruas como a Chile e a Baltazar Carrasco dos Reis, nossas conhecidas. A maioria nem pode imaginar que em meio à fúria dos noticiários policiais e debaixo na avenida haja tantos piedosos, ocupados em pedir ao Deus do Céu – e aos vizinhos – o jeito certo de agir. A pequenina Vila das Torres é bem parecida com o Brasil. E, se permitem, não raro costuma ser maior do que ele.