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“Você dorme à noite?” – o poder da pergunta tola
| Foto: Felipe Lima

Tem uma crônica de Nelson Rodrigues da qual sempre me lembro. Chama-se “O Deus numerado” e saiu no livro O reacionário – memórias e confissões, coletânea com textos publicados originalmente no jornal O Globo, entre outras fontes. Os motivos deste afeto, permitam, são o óbvio ululante, uma das expressões de Rodrigues: a historinha se passa numa redação de jornal – com folga, o melhor dos mundos. No mais, é daqueles escritos que diz pouco e revela muito.

Na crônica, Nelson fala das estagiárias de jornalismo – que circulavam pelo ambiente de trabalho com “uma leveza irreal, a agilidade incorpórea das sílfides”. Quanto a ele, àquela altura – o texto é janeiro de 1969 – ostenta o ânimo dos remadores de Ben-Hur, o filme. Compara-se a um pesado e sombrio peixe pedra, estático no fundo do aquário, a propósito, um dos eufemismos para definir como funciona uma redação de jornal.

Ao olhar para aquelas gurias entregues à paixão profissional, ainda em seus começos, o cronista imagina que, caso pedisse a uma delas que perguntasse ao papa se ele acredita em Deus, o fariam rodando as saias, mangalô três vezes. Quanto a ele, mesmo que o Santo Padre descesse no Galeão e lhe desse tchauzinho, não sairia do lugar, impassível diante do que julgaria uma pauta tola. Não se trata de um autoelogio – ou pelo menos é essa a minha impressão. Antes, Nelson lamenta a inocência perdida, garantia de poder desfrutar de asas e nadadeiras. Sabe dos ganhos secundários da ingenuidade. E se o pontífice respondesse: “Olhe, minha filha, já perdi noites de sono pensando nisso”? O jornal teria uma manchete: “Papa admite crises de fé”. Inveja da estagiária.

A “revolução” formal, moral e intelectual inspirada nas crianças – e nos ingênuos – é tão sensacional que não cansa de ser revisitada

Nelson talvez reiterasse suas teses se vivo fosse e estivesse na Biblioteca Pública do Paraná, semana passada. A palestra da ensaísta e escritora de livros infanto-juvenis Ana Maria Machado fez lotar até a boca do salão nobre. Bonito de ver. Apesar de o evento ser à noite – e do frio de lascar o cano –, muitos pais trouxeram seus filhos. Ana começou a escrever há 50 anos, cravados, de modo que havia no auditório duas gerações de leitores de seus mais de 100 livros. Na hora das perguntas, as crianças passaram uma sensacional rasteira nos adultos.

Muitas delas ainda não sabem fazer a perninha do “a”, colocar o til e o cedilha, ou passar o traço no “t”, como pude ver nos bilhetinhos que mandaram à autora. Mesmo assim, foi dali que saíram as respostas que Ana deu com mais apetite. À simples de doer “por que você escreveu Raul da ferrugem azul?” se seguiu a confidência de um episódio vivido durante a ditadura, quando ela – ao lado de Millôr Fernandes e de Ziraldo – se deu conta de que as pessoas estavam “enferrujadas”, por isso deixavam de se posicionar contra a censura. A palavra “ferrugem” pariu o personagem Raul. Seguiram-se na sabatina outras narrativas retiradas do pó dos baús, graças à curiosidade sem freios de uma gurizada que, pelo que vi, estava no auge dos seus 8 anos.

É fato que volta e meia os jornalistas tentam ser os peixes azuis cintilantes do aquário, livrando-se das questões pretensiosas, com as quais, creem, podem alterar o eixo da Terra. Há exemplos notáveis de infantilidade bem-sucedida. Anos atrás, muitos desceram o sarrafo quando a repórter Glória Maria perguntou ao bailarino Mikhail Baryshnikov se ele era feliz. Pareceu bobo, escolar. Ou na vez em que o saudoso Geneton Moraes Neto quis saber dos oficiais americanos que bombardearam Hiroshima, em 1945, “se eles dormiam à noite”. São duas perguntas dignas das estagiárias de Nelson Rodrigues. Mas perfeitas. Vai lá que Baryshnikov – que tem seu nome inscrito na história ao lado de Nijinski, um dos inventores da modernidade – acha a vida um porre? E como é ter uma noite de sono depois de matar mais de 90 mil pessoas? Spoiler – procure a reportagem e vejam o poder de uma pergunta inocente.

Num país que perdeu o prumo da prosa, o empenho em fazer perguntas simples pode ser um bom ideário

Não é moleza chegar a essas partículas simples e elementares. Mas há quem diga ser possível, como a jornalista Eliane Brum. Quem já a leu ou ouviu sabe de seu ideário. Brum se declara uma “escutadeira”, que se esvazia de todos os conceitos para absorver o que o outro diz. E que só sabe que terminou uma reportagem quando foi modificada pela apuração – na qual entrou sem carregar na bagagem conceitos prévios. Achava tudo isso uma conversa para boi dormir, até conhecê-la pessoalmente numa feira literária. Falava quase nada de si e ostentava a alquimia de, em poucos minutos, apertar o botão dos interlocutores, que se punham a falar pelos cotovelos, entregando o ouro à escutadeira. Mordi a língua. Esvaziar-se é uma impossibilidade filosófica, só que não.

Diante das perguntas dos leitores mirins a Ana Maria Machado, lembrei de Brum, claro, mas também do movimento dadaísta, que no início do século 20, diante de tiranos doidinhos para entrar em guerra – o que fizeram com requintes, e mais de uma vez –, convocava a reaprender a brincar e a falar. O “gugu-dadá” do dadaísmo durou pouco, mas o bastante para quebrar a hegemonia de cinco séculos de arte clássica, liberando qualquer marmanjo para provar o doce e o veneno da arte. O mundo nunca mais foi o mesmo depois que Duchamp, Picabia, Max Ernst, Man Ray e outros deram um peido para as regras da composição e da perspectiva – e para o que essa hierarquia toda significava nas entrelinhas.

A “revolução” formal, moral e intelectual inspirada nas crianças – e nos ingênuos – é tão sensacional que não cansa de ser revisitada, consciente ou inconscientemente. Exemplos? O romance Lolita, de Vladimir Nabokov. Na contramão das leituras mais evidentes – que acusam a obsessão criminosa de um adulto por uma adolescente – está o fato de que o personagem central da obra, o europeu Humbert Humbert, um intelectual com séculos de enciclopedismo a lhe curvar as costas, fascina-se com a leveza brincante da América representada na menina Dolores. Sua dor é a do desejo que sente, mas também a de não saber se esvaziar do que sabe, entregando-se ao sol da Califórnia e a um banho de mangueira. Humbert é Nelson Rodrigues no fundo do aquário.

Nunca vamos recuperar a inocência, sempre interpretaremos

Seguindo a toada – difícil não lembrar dos tantos artistas modernos que se revelaram em luta para quebrar as amarras do conhecimento formal. Queriam se sentir mais criadores do que discípulos. Picasso teria dito que pelejou uma vida inteira para desenhar como as crianças, matando o Rafael que vivia dentro dele. E insistido que as maiores perdas – ou as melhores – são as que morrem dentro de nós. Penso que, num país que perdeu o prumo da prosa – comportando-se, não raro, como o desesperado do velório –, o empenho em fazer perguntas simples pode ser um bom ideário.

Em tempo, se me pedissem a dica de uma leitura supimpa a respeito dessas vastas emoções e pensamentos imperfeitos, sugeriria Contra a interpretação, de Susan Sontag. É hoje livro raro, que circula à custa de fotocópias. No texto, a ensaísta norte-americana se refere às artes, é verdade, mas da arte para a vida como ela é basta um pulo. Susan esbraveja contra deuses, como Freud, que nos colocou sempre como tarados com o olho na fechadura, à caça de sentidos, teorias e explicações. A magia e o encantamento ficaram sufocados. Os excessos interpretativos não deixam a arte [e a existência] em paz, tratando-a na base da porrada.

Susan Sontag, é bom dizer, reconhece que fracassa em sua reflexão. Nunca vamos recuperar a inocência, sempre interpretaremos. Eliane Brum, imagino, sabe que não conseguimos voltar à tabula-rasa, na qual nada está inscrito. Tampouco os artistas seguiram pelos séculos 20 e 21 virando urinóis de cabeça para baixo, em obediência a Duchamp. Mas o que seria da humanidade sem se perguntar – feito um guri – como é dormir de noite depois de Hiroshima, e tudo mais.

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