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O ex-presidente da Bolívia Evo Morales em Buenos Aires, Argentina, 24 de dezembro de 2019
O ex-presidente da Bolívia Evo Morales em Buenos Aires, Argentina, 24 de dezembro de 2019| Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

Com o fim da Guerra Fria, o conceito de soft power virou uma espécie de farol para entender como o mundo se organizaria a partir de então. A definição de uma influência não-militar exercida por meios políticos e econômicos parecia ser o caminho para “convencer” governos e países a fazer escolhas que, sem tal tipo de pressão, espontaneamente não tomariam.

Mas o soft power não virou regra. Transformou-se em uma opção que foi muitas vezes ignorada e até mesmo surrada pela banalização. O soft evaporou e só restou o power.

O jornal americano The New York Times publicou na sua edição de domingo um retrato espetacular do ex-presidente da Bolívia, Evo Morales. Cercado de trevas, o cocaleiro expressa a lugubridade do exílio. Uma obra de arte produzida no México, poucos dias depois de o boliviano renunciar à presidência e fugir do país em meio a uma onda de protestos populares que reivindicam novas eleições no país.

O texto que acompanha a fotografia dramática descreve algo ainda mais tenebroso. É o diagnóstico do que pode ter sido um erro fatal validado pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A suposta fraude eleitoral ocorrida na Bolívia não teria amparo algum segundo os dados que o The New York Times conseguiu na Bolívia e disponibilizou para os cientistas. A mensagem central da notícia: Evo Morales pode ter sido vítima de um golpe.

O trio de pesquisadores afirma que, depois de revisar e corrigir o método estatístico empregado pela OEA, não encontrou evidências de fraudes. As conclusões estão em um relatório de 47 páginas que não passou por revisão de pares e que não deixa clara as condições em que foi produzido, já que não se trata de um trabalho oficial das universidades que aparecem com as assinaturas deles.

Os autores chamam a atenção para o fato de que a análise deles se limitou apenas aos parâmetros estatísticos usados pela OEA e que não serve para afirmar se houve fraude ou não na eleição. “Nossa análise não estabelece a ausência de fraude nesta eleição; isso nunca poderia ser determinado apenas com base em análise quantitativa. (...). Sua equipe (OEA) apresentou evidências de servidores secretos, folhas de contagem indevidamente completadas, modificações de software feitas na calada da noite, e inúmeras outras razões de suspeita”. O alerta também aparece “perdido” no meio do texto do The New York Times.

O questionamento do modelo estatístico da OEA parece ter virado uma compulsão acadêmica e um elixir bolivariano para dizer que o pobre Morales é vítima de um golpe. Em fevereiro deste ano, dois pesquisadores escoram-se nos vínculos com o MIT para lançar um trabalho que eles produziram de forma independente em um contrato com uma ONG sediada em Washington, bastante conhecida pela defesa de bolivarianices.

Aquele primeiro esforço acadêmico para desqualificar o trabalho da OEA já foi tratado em uma coluna de março. Os autores do trabalho, que ganhou publicidade em um blog hospedado no The Washington Post, concentraram-se no mesmíssimo argumento da “falha estatística”. Questionado, o MIT emitiu nota informando não ter nada a ver com a pesquisa.

Os trabalhos que tentam jogar por terra as conclusões dos observadores internacionais da OEA valendo-se da discussão sobre métodos estatísticos ignoram um ponto fulcral. A comissão da OEA se baseia em evidências forenses. As análises estatísticas são acessórias.

Na eleição presidencial boliviana, em novembro de 2019, simplesmente 13.100 atas (documentos que consolidavam o resultado de sessões eleitorais) foram incineradas pelos apoiadores de Evo Morales.

Diversas sessões foram palco de um milagre: registraram 100% de comparecimento dos eleitores com 100% de votos para Evo Morales. Algo antes visto apenas na Coreia do Norte do amado Kim Jong-un. Outras salas de votação contabilizaram mais votos que o número de eleitores que compareceram para votar naquela sessão.

Do total de 4.692 atas analisadas em detalhes pelos auditores da OEA, foram encontrados 227 documentos totalmente falsificados. Representando, simplesmente, 30.000 votos comprometidos.

Ignorar as falhas que o próprio Morales reconheceu quando, antes de renunciar, disse que convocaria novas eleições e demitiria os envolvidos nas falhas, é o mesmo que dizer que um restaurante com três estrelas no guia Michelin não merece a honraria porque o serviço de valet não é eficiente.

O que isso tem a ver com o fim do soft power? Nada e ao mesmo tempo tudo.

Apesar das falhas de transparência e de método (Quem são os financiadores? Por que publicar sem revisão? Por que não submeter a uma publicação científica ao invés de simplesmente postar em um site?) não existe até o momento absolutamente nada que possa desabonar o estudou além do fato de que ele pode ter sido, sob o aspecto científico, uma grande perda de tempo.

Mas no mundo real, publicações como as de fevereiro e essa mais recente, do The New York Times, são exemplos que podem nos ajudar a entender as relações internacionais sob o signo do sharp power.

Evo Morales, seus amigos cubanos e o famigerado Grupo de Puebla se apoiaram na “ciência” para tumultuar. A tese do golpe voltou com “respaldo”. O suposto erro de interpretação estatística da OEA virou desculpa para elevar a tensão na já conflagrada Bolívia que vive sob um governo interino que fora estendido pelo adiamento das eleições em meio à pandemia e que vive uma guerra interna com as organizações cocaleiras, que são a base política e criminosa que sustenta o partido do ex-presidente Morales.

O sharp power é o conceito que explica como governos são capazes de criar confusão e distorções valendo-se de técnicas que envolvem a manipulação e integridade de instituições que formam a base das democracias ocidentais. Imprensa e academia são uma delas.

A tal influência russa nas eleições americanas se encaixa perfeitamente no conceito. Serviu para desacreditar o sistema eleitoral americano e superdimensionar as capacidades de Putin. A mesma coisa se passou com a teoria que mensagens em massa transmitidas nas campanhas do Brasil foram capazes de influenciar o eleitorado. Segundo essa lógica, Trump e Bolsonaro não venceram conforme as regras do jogo. O americano teria recebido a ajuda de uma potência estrangeira, enquanto no Brasil uma enxurrada de fake news circulando de celular em celular, criou um ambiente em que Bolsonaro prosperou.

A produção de conhecimento e de informação são tão importantes para o sharp power que não é por acaso que Rússia e China travestiram de “agências de notícias” seus órgãos estatais de propaganda. Todos os dias, os governos dos dois países transmitem suas mensagens que passam como sendo notícias independentes. Recentemente, esses governos têm avançando, por meio de “convênios”, sobre órgãos de imprensa tradicionais. Um fenômeno global que não poupou o Brasil.

E as universidades não estão fora dessa estratégia. Por coincidência, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos anunciou, nesta semana, o indiciamento de um importante cientista de Harvard. As autoridades entenderam que ele mentiu sobre sua relação com a Universidade de Tecnologia de Wuhan, em um programa de recrutamento de cientistas para atender os interesses chineses.

O professor pode ser inocentado. Mas se condenado, pode pegar cinco anos de prisão. O caso dele serviu de partida para uma grande investigação que o Departamento de Educação dos Estados Unidos está conduzindo em algumas das principais universidades americanas para identificar fragilidades no sistema.

Essas fragilidades são um perigo que ronda a academia. Grupos de interesse sempre tentaram comprar a reputação por meio de consultorias acadêmicas. Agora, países tentam “comprar” o selo de qualidade de algumas das mais valiosas instituições americanas.

Dinheiro proveniente do Irã e da China, por exemplo tem irrigado projetos de pesquisas, financiado centros de estudos e servido para financiar “especialistas” que fazem parte do sharp power desses países. Harvard, que está sob escrutínio, já reconheceu, em nota, que reverá seus critérios para evitar que a instituição seja empregada nessa estratégia. O resultado pode ser surpreendente.

Voltando ao estudo sobre a eleição da Bolívia. Qualquer suspeita sobre a idoneidade dos autores é leviana e, portanto, não tem espaço nessa reflexão. O risco é de outra natureza. Não se trata de ou defender a metodologia da OEA, ou desmontar a dos seus críticos. Evo Morales vem roubando as eleições desde quando rasgou a Constituição, jogou fora resultado de um referendo popular e meteu e mãos nas urnas. Os fatos estão devidamente materializados e não dependem de nenhum modelo estatístico para serem identificados. Mas, na era da confusão, isso é só um detalhe.

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