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Desde o tempo de Euclides da Cunha, a violência é uma endemia amazônica
| Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

No início do século passado, Euclides da Cunha escreveu uma série de relatos sobre a sua viagem à Amazônia que, de tão crus e precisos, atravessam o tempo. Quando Cunha chegou à fronteira do Brasil com o Peru – a mesmíssima região onde desapareceram o jornalista inglês Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira (nesta segunda-feira, circulam informações desencontradas sobre a localização dos corpos) –, ele relembrou a descrição que um dos mais importantes políticos peruanos daquela época fez sobre o lugar. “O coronel Pedro Portíllo, atual Prefeito de Loreto, que a visitou em 1899, denunciou-a, indignado: ´Alli no hay leyes... El más fuerte que tiene más rifles, es el dueño de la justicia’. (...) E, afinados pelo mesmo tom, um sem-número de outros excursionistas, que fora longo citar, delatam, em narrativas expressivas, o regime de tropelias que se normalizou naquelas terras — e se amplia seguindo os rastros do homem que passa pelo deserto com o só efeito de barbarizar a própria barbaria.

O que faz o relato de Cunha guardar semelhança ou até ser preciso com muitas das realidades amazônicas não é apenas resultado de sua colossal capacidade de observar e descrever. A Amazônia que o jornalista viu segue muito parecida 123 anos depois. Naquela época, eram os seringueiros que apartavam e matavam índios para liberar a floresta para extração do látex. Assim como essa prática sinistra, caucheiros, regatões e outros personagens da expansão pioneira da fronteira já não existem. Eles foram substituídos por garimpeiros, grileiros, pescadores ilegais e, principalmente, os traficantes.

Na Amazônia, a violência é uma endemia.

E a causa desse mal pode ser explicada por vários meios, mas nenhum deles pode ignorar o fato de que até hoje o Estado não ocupou a Amazônia. Ao longo da história, a região recebeu ondas migratórias sob o pretexto de ocupação. Mas levar gente para a região sem levar o Estado e suas instituições é o erro continuado, que desde antes da viagem de Cunha, entre 1904 e 1905, só serviu para “barbarizar a própria barbaria”.

Todos, ou quase todos, os esforços de ocupação e de “desenvolvimento” da Amazônia passam pelo extrativismo. A inexplicável insistência em um modelo econômico sustentado pela exploração da floresta – seja de forma predatória, seja de maneira “sustentável”. Uma ilusão que não só condena à região à pobreza, mas também ao crime e a todo tipo de ilegalidades relacionadas ao modelo econômico imposto à região, que, em essência, se resume a explorar a floresta e seus recursos.

A vida no fundo dos seringais, nas barrancas dos rios ou até mesmo nas palafitas, que perfilam longas faixas sobre canais e encostas de cidades médias e metrópoles amazônicas, deveria ser reconhecida como a antítese da visão do paraíso que insistimos em ter da Amazônia.

O homem que está preso, suspeito de ter matado a dupla, é um ribeirinho como qualquer outro. Forjado na mesma Amazônia onde, quase sempre, vilões e vítimas têm histórias parecidas. Suas vestes, seu estilo de vida e até a sua pele cabocla são igualzinhos aos daqueles que, a sua má reputação indica, são as suas vítimas cotidianas. Índios e ribeirinhos sob ameaça constante em um território onde nossas leis só aparecem de vez em quando, em operações especiais.

Transportando para a realidade urbana brasileira, o ribeirinho que sai da posição de vítima para a de algoz é como o soldado do tráfico. Apesar de ter nascido e crescido em sua favela, ele se transmuta em uma máquina de violência que subjuga seus vizinhos e quem quer que ameace seu status dentro daquele ecossistema social. Oprimem e matam gente que, em vários aspectos, é igual a ele.

O salto entre ser a vítima ou vilão pode ser a combinação de escolha e de pragmatismo. Quando não há o ônus, vale à pena estar na posição de quem subjuga, oprime, ameaça e mata. Nas favelas, o tráfico é um instrumento de poder e ascensão na comunidade. Na floresta, a pistolagem e outras formas de imposição violenta são recursos banalizados. Quem vive por lá conhece bem a linha fina que separa a vida e a morte na Amazônia.

E como bem definiu Euclides da Cunha ao relatar o cotidiano de violência nos confins amazônicos, de tempos em tempos essa realidade transborda “da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua”.

Mais uma vez, a provável brutalidade imposta a Phillips e Pereira nos coloca frente a frente ao horror.

Em 1988, Darly Alves da Silva e seu filho Darci Alves – mandante e autor do assassinato de Chico Mendes – chocaram o mundo. Raquíticos, malvestidos, cheios de “cruzes de malária” do prontuário, calejados de lidar com a terra e florestas, que eles estavam dispostos a domar, encarnaram o símbolo do mal sobre a Amazônia. Embora fossem a imagem refletida de Mendes, com o fato de que acrescentaram o elemento da violência que transforma a vítima em vilão, pai e filho jamais foram vistos como parte do mesmo ambiente de abandono institucional daquela região.

Quem vivenciou aquele ambiente de conflito conta que a morte só entrou na conta quando a disputa saiu do campo das ideias e conceitos e partiu para o nível pessoal. Os Alves se viam tão vítimas como Chico e por vias tortas se achavam tão ameaçados quanto ele.

E não se trata de justificar assassinatos e mortes. Pois é evidente que a vítima é a vítima e o assassino é o assassino, mas a má vontade em entender o que levou Xapuri a se tornar o palco daquele crime pode explicar todos os outros crimes que vieram depois.

Por exemplo, se estivesse viva, a freira americana Dorothy Stang teria completado 91 anos na semana passada. Ela foi assassinada na cidade de Anapu (PA) em fevereiro de 2005 em meio a um ambiente de conflagração, resultado da grilagem de terras e desmatamento ilegal com subsequente venda de madeira.

Stang precisou atravessar muitas linhas. Transformou-se em anteparo entre as pessoas que ela defendia e os seus algozes. Assumindo um papel que deveria ser do Estado, a religiosa abraçou o desafio como missão pessoal. Portanto, deu seu nome e sobrenome a uma causa que não deveria existir em um lugar minimamente civilizado. E assim, ela se transformou em uma inimiga. E por isso foi morta.

Dezessete anos depois, vemos novamente a Amazônia nua e crua saltar “da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua”. Dom Phillips, um jornalista inglês com anos de estrada no Brasil, foi à Amazônia tentar contar parte do vazio institucional e a solidão dos amazônidas. Phillips estava acompanhado pelo indigenista Bruno Pereira – um ex-funcionário da Funai que estava na mira de garimpeiros e desmatadores. O mesmo tipo de personagem das histórias de Mendes e Stang.

Fontes locais contam que Pereira estava na mira dos criminosos. Ele colecionava ameaças de morte. Assim como Stang, ele havia se colocado na condição de anteparo entre os vilões e as vítimas. Pereira tinha chamado para si a responsabilidade que não deveria jamais ser de um cidadão, mas do Estado. Uma da delas foi a organização de uma grupo de vigilância indígena que atua como força paraestatal na fiscalização e denuncia de crimes ambientais.

A evolução dos conflitos colocou Pereira na condição de inimigo, ou até mesmo de agressor. Pois no outro lado, acreditem, os depredadores da floresta se veem como vítimas. Na cabeça deles, Pereira era o inimigo que ameaçava o seu negócio e sustento.

Somente as investigações poderão confirmar. Mas, ao que parece, Dom Phillips certamente não era o alvo dos criminosos que teriam resolvido executar a sentença de morte que eles impuseram ao indigenista. Phillips pode ter sido colocado na linha de tiro simplesmente por estar ao lado de alguém marcado para morrer. Pereira, por sua vez, talvez tenha baixado a guarda, acreditando que a companhia de um jornalista estrangeiro o protegeria.

Estas são apenas conjecturas de alguém que, por mais de uma década, teve que fazer esse tipo de conta para saber quando, como e até onde ir no terreno amazônico.

Caso sejam confirmadas, as mortes de Phillips e Pereira encherão de tristeza familiares, amigos e quem trabalha pela Amazônia. Mas, além disso, deveriam envergonhar quem se diz preocupado com a região, mas que se recusa a encarar uma questão que vai muito além do desmatamento. Não há solução para Amazônia sem passar pelas pessoas que vivem na floresta.

A ausência do Estado, combinada com o ilusionismo do ambientalismo ongueiro, é o pano de fundo da tragédia. Enquanto isso não mudar, a Amazônia e os amazônidas seguirão à margem da história.

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