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O ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, que fugiu para a Argentina em 2019.
O ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, que fugiu para a Argentina em 2019.| Foto: AFP

A presidente interina da Bolívia desistiu de disputar a eleição presidencial de 18 de outubro. Jeanine Añez divulgou um video no qual justifica sua decisão. Deixava de lado a candidatura para cuidar da democracia. Foi exatamente o que ela disse. A então senadora, que assumiu a presidência depois que Evo Morales fugiu do país e da crise institucional que ele e seu partido criaram depois da descoberta de fraudes na eleição de 2019, havia recebido exatamente o papel de guardiã da combalida democracia boliviana. O mundo democrático esperava apenas uma coisa de Jeanine: uma transição democrática. Como condutora do processo, Jeanine descartou que se candidataria ao cargo que ocupava interinamente. Uma decisão certeira em um país convulsionado por Morales e sua base cocaleira.

Mas ela mudou de ideia. Lançou-se candidata e passou a ter como seus principais críticos aqueles que deveriam ser seus aliados. Repetindo o manual da oposição venezuelana, que vive aos tapas, os bolivianos partiram para a briga. Luiz Fernando Camacho, o herói dos protestos que agitaram o país, foi carbonizado pelos opositores concorrentes que apenas deixaram o novato falar livremente para revelar suas debilidades.

Carlos Mesa, que sem a fraude da eleição do ano passado teria ido ao segundo turno contra Evo, não abriu mão do que ele considera ser um direito: ser o candidato da oposição. Tudo levava a crer que contra os cocaleiros de Evo Morales a oposição precisaria costurar uma aliança entre a dupla Mesa-Camacho – embora fosse improvável uma chapa que os unisse.

Com Jeanine Añez querendo ficar mais cinco anos no poder, a oposição entrou em guerra. Outro ex-presidente, Jorge Tutu Quiroga, entrou na batalha pela Casa Grande do Povo, a sede do governo boliviano.

Com tanto opositor querendo o poder, coube a Evo Morales ativar a máquina de propaganda dentro e fora da Bolívia para reforçar sua mensagem de vitimismo e apontar um laranja para representá-lo na eleição. Ficou fácil.

Com tanto opositor brigando entre si, Luis Alberto Arce Catacora, que serviu a Morales como ministro, lidera as pesquisas. Jeanine, sem chances de chegar ao segundo turno, amargava a terceira posição, com sete pontos a menos que o segundo colocado, Carlos Mesa. Ficou fácil para ela desistir da campanha.

Em seu vídeo, ela envia a mensagem equivocada de que seu movimento serve para impedir que o MAS, partido de Evo Morales, vença. Uma bobagem que só dá tamanho àquele que enterrou o país na crise institucional, tornou a economia ainda mais dependente da cocaína e fraudou as eleições.

O gesto correto de Jeanine tem outro efeito que, infelizmente, os demais candidatos opositores colocaram em segundo plano. O sistema eleitoral boliviano, assim como o português e o espanhol, organiza-se pelo método desenvolvido no século XIX pelo belga Victor D'Hondt: o partido que recebe mais votos no primeiro turno leva o maior número de cadeiras no Parlamento.

Ainda que o MAS provavelmente não vença as eleições no segundo turno, o fato de toda a oposição ao movimento socialista-cocaleiro estar dividida indica que o partido de Evo Morales provavelmente terá a maioria dos deputados e senadores. Antes da renúncia de Jeanine, algumas projeções apontavam para até metade das cadeiras nas mãos do grupo comandado por Morales, o que faria da vida do futuro presidente algo verdadeiramente infernal.

Por mais que tenha sido justificada de maneira equivocada e tenha ocorrido tão tardiamente, a inflexão da presidente interina terá um efeito positivo na composição do Parlamento, o que ajudará o novo presidente a sofrer menos pressão dos parlamentares fiéis a Morales.

A saída do labirinto boliviano pode ser uma união da oposição iniciada por Jeanine. Resta apenas um mês para uma reengenharia das forças. Com base nas pesquisas, Mesa sabe que ele é o único com chances. Tuto e Camacho terão que se enquadrar. Mas depois de tanto escracho em praça pública, vai ser curioso ver como eles vão curar as suas feridas e como vão montar (ou não) uma colisão para chegar ao governo com a melhor configuração possível.

Derrotado, Evo Morales seguirá tentando tocar fogo na Bolívia. Sabe que quanto pior por lá, melhor para ele. A crise econômica boliviana tem contornos assombrosos, e a Covid-19 não dá sinais de arrefecimento. De sua toca na Argentina, onde se escondeu para não responder por crimes que vão de estupro a terrorismo, Morales sabe que o próximo presidente terá muitas chances de fracassar. E ele fará tudo para seja assim.

Com a Bolívia em frangalhos, Evo Morales e seu bando vão reaparecer como solução. Uma receita clássica latino-americana.

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