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A princesa britânica Anne, o primeiro-ministro do Canadá Justin Trudeau, e o primeiro-ministro britânico Boris Johnson em recepção no Palácio de Buckingham, Londres, 3 de dezembro de 2019, na cúpula de líderes da Otan
A princesa britânica Anne, o primeiro-ministro do Canadá Justin Trudeau, e o primeiro-ministro britânico Boris Johnson em recepção no Palácio de Buckingham, Londres, 3 de dezembro de 2019, na cúpula de líderes da Otan| Foto: Yui Mok / POOL / AFP

A semana começou como uma imagem peculiar. Líderes mundiais se comportando como colegiais em uma "rodinha" para fazer troça de um colega que, assim digamos, não é o mais popular da turma. O presidente francês Emmanuel Macron e os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, do Canadá, Justin Trudeau, e da Holanda, Mark Rutte. Deram uma boas gargalhadas às custas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Os quatro zombavam do americano horas depois de Macron dizer, no encontro que celebrava os 70 anos de criação da Otan, que a organização padecia de morte cerebral. Em resumo, é o mesmo que dizer que os Estados Unidos haviam perdido a liderança natural que exerceram desde fundação da entidade.

O piadista, entretanto, foi Trudeau. O canadense ironizou as "longas" coletivas de Trump. A conversa vazou pelo sistema de transmissão da BBC e provocou a ira do americano. Trump não falou mais com os jornalistas e mandou um recado para canadense: "Ele tem duas caras".

O bullying sofrido por Trump tem uma razão. Ele não está disposto a seguir pagando a maior fatia das despesas da Otan, sem que os sócios europeus paguem pelo menos o mínimo previsto pelos estatutos da aliança militar: 2% do PIB.

O Canadá de Trudeau, por exemplo, desembolsa o equivalente a 1,3% do PIB. O francês Macron – assim como o champagne, é muito bom de espuma. A França ocupa a terceira posição no ranking dos maiores contribuintes, com repasse de apenas 1,78% do PIB, e é um dos maiores beneficiários da aliança. Na defesa da Otan, seu comportamento é parecido com o seu espírito ambientalista. Apresenta-se como salvador da Amazônia e reclama daqueles que não cumprem as metas de redução de gases estufa estabelecidas do Acordo de Paris, mas está longe de cumprir o dever de casa. Está atrás do Brasil no cumprimento das metas.

Enquanto os aliados batem cabeça e se ofendem em praça pública, a Otan se diminui frente a uma evidente escalada militar e geopolítica do Oriente. A invasão da região da Crimeia na Ucrânia foi o mais ostensivo dos gestos de Moscou na região. Sem falar da ameaça do extremismo islâmico que passou a fazer parte da realidade diária dos europeus.

Em outra frente, o presidente Donald Trump deu munição para aqueles que acreditam que as prometidas e esperadas alianças entre os Estados Unidos e o Brasil são uma via de mão única na qual apenas o Brasil tem cedido e não recebido nada em troca. Pelo Twitter, ele anunciou aumento nas tarifas de importação de aço do Brasil. Como se não bastasse acusou o seu principal aliado no região de manipular o câmbio para tirar vantagens do dólar forte. Em nome da defesa dos seus agricultores. Seria o cumprimento de seu famoso America first?

Tratando-se de efeitos imediatos e sobretudo eleitorais, a rasteira no Brasil faz todo sentido. Mas os Estados Unidos estão repetindo o erro que levou a substancial perda de relevância no hemisfério e abertura de uma avenida pavimentada para a China avançar na região. Há quem pense que seu discurso é apenas eleitoral e que ao fazer as contas sobre as sobretaxas verá que elas mais farão mal a indústria americana que a brasileira. O Brasil estaria sendo usado de escada para o seu palanque eleitoral.

Hugo Chávez, quando fincou seus pés no Palácio de Miraflores em Caracas, desenhou uma estratégia de expansão e influência que levou a maioria dos países da região a orbitar em torno de seu projeto de revolução bolivariana. Até o Brasil encolheu em relevância ao se submeter aos planos do tenente-coronel venezuelano. Por meio de financiamentos baratos, doações de petróleo e apoio político, Chávez conseguiu, por um bom tempo, ser dono da Organização dos Estados Americanos (OEA), fundou a já falecida Unasul, elegeu e ajudou a perpetuar no poder vários presidentes amigos.

Os Estados Unidos, por sua vez, escaldado pela fama de interventor, abriu mão da região. Nos últimos anos que antecederam a chegada de Trump na Casa Branca, os americanos negligenciaram a emergência do chavismo, foram expulsos da Bolívia e perderam a liderança e influência no combate ao tráfico na Colômbia. Talvez atordoados pelo nocaute bolivariano, perderam o rumo e viraram as costas para quem deveriam estender as mãos e fortalecer as relações. A América Latina praticamente desapareceu da agenda do Departamento de Estado.

Mauricio Macri recebeu de Cristina Kirchner uma Argentina em frangalhos. Apesar de incensado como aquele que daria início a uma guinada antibolivariana na região, Macri não obteve ajuda alguma. A Argentina não recebeu nenhum tratamento especial e o país jamais decolou. A conta do fiasco econômico não recaiu sobre quem o criou, mas sobre quem não foi capaz de revertê-lo. E por mais bizarro que possa parecer, os argentinos puniram Macri trazendo Cristina Kirchner de volta para o poder. É como chamar o incendiário para apagar o fogo. É o mesmo que o PT quer fazer no Brasil e o que Evo Morales espera ser para a Bolívia, país que está a um passo da explosão de um profunda crise econômica.

De forma alguma é desejável que os Estados Unidos se comportem tal como Chávez no passado. Mas é incompreensível a falta de engajamento da maior potência do planeta em ajudar seus aliados e, com isso, fortalecer a sua própria rede de influência. Pelo contrário. Tem havido um abandono sistemático e injustificado dos amigos. Trump se livrou de alguns nomes que faziam corpo mole nas relações com a América Latina e que, em muitos casos, turvavam a percepção dos problemas regionais.

Em termos de relações bilaterais, não há risco algum de arrefecimento de um projeto de aproximação que desde o momento zero do governo Bolsonaro, ainda na transição, tem sido desenhado como sendo o eixo de um política externa desenhada com ambições econômicas, mas derivada de uma identificação de valores ocidentais.

Mas no aspecto político internacional. Apesar de a bordunada do presidente Trump ter foco em sua política doméstica. O efeito é sentido na América Latina.

Na Embaixada da China em Brasília havia um clima de tensão permanente por causa do alinhamento do Brasil com os Estados Unidos. Razão pela qual o governo chinês resolveu investir na conquista de parlamentares do PSL na tentativa de criar um canal com o bolsonarismo. Além disso passou a fazer jorrar rios de dinheiro para acionar lobistas proficientes nos meandros da política brasileira. Mas, menos de um ano depois, os chineses já festejam. Não escondem de interlocutores em Brasília que na queda de braço levarão o melhor. Veem uma estrada pavimentada com asfalto americano para conquistar seus objetivos na região.

Em outubro passado, o ministro das Relações Exteriores apresentou em Washington uma conferência na qual ele fez uma observação que escapou do noticiário. Ernesto Araújo chamou a atenção para o fato de que o Ocidente nunca entendeu as razões que levaram à vitória da Guerra Fria. Quase sempre reduzimos a derrota do comunismo às questões econômicas. Mas Araújo chama atenção para um fato que negligenciado ficou vulnerável um ataque sistemático. Os valores ocidentais. O principal deles, a liberdade.

Enquanto os colegiais da Otan se veem muito espertos dando rasteira uns nos outros, ou a diplomacia americana não ajusta o foco no que realmente interessa ao seu redor, os novos atores que marcham sobre a região sabem muito bem como ocupar estes espaços e, sobretudo, a curar as feridas provocadas por crises internas. Diante do tabuleiro geopolítico global, apenas um lado sabe exatamente qual é o jogo. E não se trata do Ocidente.

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