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Máscara do presidente Vladimir Putin em loja de São Petersburgo, Rússia
Máscara do presidente russo Vladimir Putin, que já foi espião da KGB, em loja de São Petersburgo, Rússia| Foto: Olga MALTSEVA / AFP

Em julho de 1983, a então União Soviética amargava a inferioridade militar e econômica frente ao seu rival os Estados Unidos. A Guerra Fria começaria literalmente a arrefecer, mas nas entranhas da máquina de espionagem e inteligência comunista, a KGB, uma arma barata e letal havia alcançado o nível máximo de excelência: a desinformação. Os russos disseminaram a história de que o ainda obscuro vírus da Aids havia sido criado nos Estados Unidos para ser empregado como arma biológica. Batizada de "Operação Infektion" a campanha de desinformação se alastrou lentamente ao ponto que se consolidou como uma hipótese verdadeira que passados quase 40 anos, ainda provoca dúvidas em muito incautos. Em 2018, o jornal americano The New York Times lançou um documentário imperdível relatando como os russos montaram a mais engenhosa e duradora fábrica de fake news.

O filme mostra como um dedicado espião havia se transformado em um expert da arte de criar mentiras com o objetivo de desestabilizar os inimigos. O nome dele é Vladimir Putin. Ele mesmo. O líder que desde 1998 comanda a Rússia, ora como presidente, ora como primeiro-ministro. E o fato de ter deixado a KGB não significa que ele tenha abandonado a receita de criar instabilidade com a indústria de desinformação que ele ajudou a construir.

Nos últimos quatro anos, as engrenagens russas foram colocadas para rodar processos eleitorais nevrálgicos no Ocidente. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump teve a sua eleição colocada sob suspeita e o muito tempo de seu mandato ocupado pelas investigações sobre a interferência russa em sua eleição. Moscou inundou a América com postagens maldosas deixando toda ordem de rastros para, propositalmente, ser descoberta e se transformar em centro de um debate político que parecia enterrado, mas voltou à tona nesta semana depois do vazamento de um informe sigiloso produzido para deputados americanos, que dizia que a Rússia estaria trabalhando para reeleger o presidente Trump.

Embora o caso americano seja o mais famoso, ele não é único entre as várias celeumas eleitorais provocadas por Moscou. As investigações mostraram que eles contaminaram o referendo do Brexit (2016) e para promover a campanha separatista no referendo sobre a Catalunha, em 2017. Não é mensurável o nível de influência ou a real capacidade que a Rússia ter impactado no resultado das eleições. Mas é indiscutível que Putin alcançou com louvor o objetivo de melar os processos eleitorais em alguns dos locais onde as eleições estão sedimentadas como um dos pilares da democracia.

Não estou seguro de que Putin tenha tido a pretensão de intervir no resultado eleitoral. Tendo a crer que o objetivo foi minar a credibilidade dos sistemas eleitorais. Desgastar a democracia valendo-se da idiotia dos movimentos opositores que, o invés de assumirem a incompetência na disputa eleitoral, preferem atribuir ao WhatsApp e às redes sociais as suas derrotas nas urnas.

A premiação do Oscar desse ano expôs mais uma aterradora mentira de Moscou. Entre os finalistas na categoria documentário estava o sufocante The Cave. O filme descreve a rotina de trabalho de médicos e ativistas em um hospital subterrâneo construído sob os escombros de uma cidade totalmente arrasada pelos bombardeios russos e sírios. Filmado entre 2016 e 2018, o documentário nada fala da presença dos terroristas do Estado Islâmico e dos grupos rebeldes contrários ao regime do ditador Bashar al-Assad no entorno de sua área de atuação. Mas as cenas veiculadas por eles dão elementos suficientes para compreender que se eles não atacavam o Isis, também não militavam por eles.

O hospital-caverna era um oásis em meio à catástrofe humanitária promovida pela Rússia, Síria e Irã para retomar o controle de rebeldes. Segundo um relatório da organização Human Rights Watch, em 2018, os três países usaram métodos ilegais como armas químicas para retomar a região. O documentário mostra como o ataque químico impactou a população civil e selou o fim do hospital que fora fechado e abandonado.

No ano passado, Moscou anunciou ter “descoberto” um hospital do Estado Islâmico (Isis) nos subsolos de Ghouta. A máquina de propaganda russa se valeu de "documentaristas independentes" e conseguiu enganar até a direitista Fox News, que transmitiu as acusações russas como se fossem investigações autônomas de jornalistas que permitiram achar o hospital do Isis.

Na América Latina, Moscou tem manipulado de forma descarada informações sobre o regime de Nicolás Maduro na Venezuela e metido a colher nos distúrbios que levaram a semanas de protestos de rua no Chile e em outras manifestações de rua em outros países. Não está claro ainda qual mensagem Moscou quer mandar para o Brasil. No segundo semestre do ano passado enviou militares para a fronteira da Venezuela com o Brasil. Nos últimos dias, colocou na costa brasileira um poderoso navio espião que singrou águas territoriais brasileiras ocultamente por uma semana. Com capacidade de interceptar sinais eletrônicos, o navio espião, conforme revelou o jornal O Estado de S. Paulo, desrespeitou as tentativas de contato das autoridades brasileiras e obrigou a Marinha a realizar uma missão de reconhecimento para localizá-lo na costa.

Embora não seja ilegal, a ação russa foi considerada injustificada, suspeita e em certa medida hostil, segundo uma fonte militar brasileira. O navio russo tem, segundo o militar, a capacidade de "grampear" a comunicação de cabos submarinos. Os russos fizeram operações semelhantes no Reino Unido, na costa dos Estados Unidos, no Caribe e agora na América do Sul. Não se sabe o que eles são realmente capazes ou o que eles querem com a demonstração de força. Talvez tudo não passe de um grande teatro. Os russos não mentem só para tumultuar o mundo. Mentem sobre eles mesmos. Aliás, essa é vírus que os faz parecer bem mais capazes e maiores do que efetivamente são.

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