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“365 dias” romantiza sequestro e estupro. Onde estão as feministas?
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Está fazendo sucesso na Netflix o longa-metragem polonês “365 dias”, que tem o seguinte enredo: Massimo (Michele Morrone), um mafioso, traficante e assassino machista e violento, em suma, um ser humano desprezível em todos os aspectos, sequestra a jovem Laura (Anna-Maria Sieklucka), depois de drogá-la, e a mantém em cárcere privado. E avisa: ela ficará presa por 1 ano, até... se apaixonar por ele.

Massimo promete que nada acontecerá sem o consentimento de Laura (exceção feita ao fato de mantê-la refém à força, ele quer dizer), mas a trata como um objeto. “Eu não sou um saco de batatas, não sou sua propriedade!”, ela chega a protestar, sem muita convicção, diante de uma ordem degradante qualquer. “Por que você é tão desobediente?”, ele retruca.

Laura é diariamente constrangida, acariciada, assediada e ameaçada. É obrigada não somente a ouvir barbaridades, mas também a assistir: há uma sequência em que ela é amarrada na cama e forçada a ver Massimo ter relações sexuais com outra mulher (para Laura “ver o que está perdendo”, ele diz).

E o que acontece? Laura se apaixona por Massimo! Não, não  se trata de um filme sobre a Síndrome de Estocolmo: ela realmente fica encantada pelo mafioso, com quem passa a viver um intenso romance.

A primeira mensagem de "365 dias é essa" é essa: apesar de, entre outros crimes, constranger mulheres a fazer sexo – incluindo a comissária de bordo de seu jatinho particular – Massimo no fundo é um cara legal e sensível. Além de ser rico, bonito e sarado, o que parece fazer toda diferença.

Ainda na condição de prisioneira, Laura ganha muitos presentes caros (ela adora fazer compras) e é exibida em várias festas luxuosas – uma delas com direito a uma cena de ciúme, quando Massimo se revolta com o vestido curto que ela está usando. Oi?

“365 dias” romantiza, glamuriza e naturaliza situações violentas e abusivas. Nas linhas e entrelinhas, a narrativa faz pouco menos que uma apologia do estupro

Massimo é assim: não admite ser rejeitado  nem contrariado. Bem representativa da sua personalidade (e da qualidade dos diálogos do filme) é a cena em que ele aperta o pescoço de Laura e diz, muito romântico: “Vou transar com você com tanta força que vão escutar seus gritos em Varsóvia” (eles estão na Sicília). Que mulher resistiria a um poema de amor desses?

Assumidamente um soft porn, com uma trilha sonora cafona e todos os clichês do gênero, “365 dias” abusa das sequências de sexo selvagem em belas paisagens. Até aí tudo bem. As cenas de sexo são a parte menos pior do filme, até porque nessa horas o casal não fala nada: a total inexpressividade e  incapacidade de representar da dupla é patente, ainda que os papéis não ajudem. Suas atuações são baseadas em mordidas no lábio, respiração ofegante e olhares sedutores.

São cenas de um erotismo publicitário, de comercial de lingérie, com uma estética cafona e de mau gosto (como tudo no filme). Sequências cheias de caras e bocas são coreografadas como um clipe musical dos anos 90: Massimo e Laura transam para a câmera, não um com o outro, reforçando assim estereótipos que associam a qualidade do relacionamento íntimo ao atletismo sexual (“Nós só dormimos uma hora”, ele diz orgulhoso, antes de começar mais uma maratona de fornicação). Mesmo quando Laura aparece se masturbando, é como se ela estivesse posando para a capa de uma revista masculina.

Cenas do filme "365 dias"<br />
Cenas do filme "365 dias"

“365 dias” poderia ser apenas um filme no limite da pornografia, horroroso mas inofensivo, uma distração para o público menos exigente, confinado em casa em tempos de quarentena. O problema é que, como já ficou claro (espero), o filme romantiza, glamuriza e naturaliza situações violentas e abusivas. Nas linhas e entrelinhas, a narrativa se baseia nas seguintes premissas:

1) “365 dias” sugere que, se um homem for rico, bonito e tiver um peitoral perfeito, ele pode ser machista, mafioso, estuprador, sequestrador e até assassino que está tudo certo;

2) “365 dias” sugere que, com um pouquinho de paciência (e muito dinheiro), toda mulher está à venda, desde que o pagamento seja generoso;

3) “365 dias” sugere que o papel da mulher, nessas situações, é se submeter à vontade do homem, relaxar e gozar – se possível, tirando proveito da situação, materialmente falando (relacionamento saudável é isso); e, o que é mais grave,

4) “365 dias” sugere que sequestrar uma mulher e mantê-la em cárcere privado é aceitável, desde que ela acabe gostando  – o que é pouco menos que uma apologia do estupro.

Essa mensagem de “consentimento retrospectivo” é explicitada na cena do jatinho: a comissária de bordo chora ao ser constrangida a fazer sexo oral em Massimo, mas no fim esboça um sorriso, dando a entender que gostou de ser abusada. Ou seja, o filme vende a ideia de que o sonho secreto de toda mulher é se submeter à vontade de um macho-alfa, ainda que seja um criminoso.

Por tudo isso, perto de “365 dias” a franquia “50 tons de cinza” parece um tratado em defesa da dignidade das mulheres.

Perto de “365 dias”, a franquia “50 tons de cinza” parece um tratado em defesa da dignidade das mulheres, mas as feministas estão mudas. Onde está o “Não é não!”?

Perguntas: em uma época na qual uma cantada ou um elogio são equiparados a um estupro, onde estão as feministas, que ainda não pediram o cancelamento do filme? Em uma época na qual até a beleza ofende – a ponto de as transmissões dos jogos da última Copa do Mundo terem evitado destacar mulheres bonitas na arquibancada – onde está a turma da lacração? Em uma época na qual um clássico do cinema como “...E o vento levou” é CENSURADO, onde está a galera do “ódio do bem”?

As reações, até aqui, foram muito tímidas. A misoginia e a masculinidade tóxica de Massimo não estão incomodando? Onde está o “Não é não!”? Ou se trata-se de mais um caso de moralidade seletiva?

Atenção! Eu, pessoalmente, não defendo que o filme seja “cancelado” ou retirado da Netflix. Ainda que seja um filme doentio, assiste quem quer. Só estou manifestando minha estranheza diante do silêncio de uma turma cada vez mais empenhada em perseguir artistas e censurar obras.

É importante ressaltar que, mesmo deixando de lado todas as questões acima, “365 dias” é um filme sofrível, cheio de furos no roteiro, problemas de continuidade, diálogos primários, personagens sem qualquer profundidade psicológica etc. Mas, no fim das contas, nada disso faz muita diferença diante das mensagens que o filme passa.

Em uma festa de casamento, a noiva joga o buquê, e adivinhem nas mãos de quem vai parar? Sim, Massimo e Laura vão se casar - mas ela vai ter que pedir autorização para convidar os pais e a melhor amiga para a cerimônia. Normal, né? E sim, ela chora quando experimenta o vestido de noiva, porque seu sonho secreto era se casar de branco. E não vou nem falar no golpe da barriga (Ops! Falei).

Por fim, outra mensagem bizarra, perigosamente vendida para o público feminino jovem, é esta: “365 dias” sugere que basta a uma mulher ser bonita para ter o melhor de vários mundos: vida loca e casamento, aventuras desvairadas e família certinha, sexo pago e romance, álcool e drogas a rodo e realização pessoal, discurso feminista para lacrar nas redes sociais  e um macho-alfa a quem obedecer na intimidade. Evidentemente a vida não é assim, mas parece que muita gente acredita nisso hoje em dia. Ou, pelo menos, acha isso normal.

“365 dias” é baseado em uma série de livros da escritora polonesa Blanka Lipińska, e já circulam notícias de que terá uma continuação. O final “aberto” (alguém acredita que Laura morreu?) aponta fortemente para isso. As feministas vão continuar caladas?

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