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Alimentos da merenda escolas adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) serão doados às famílias dos alunos que tiveram aulas suspensas.
Imagem ilustrativa| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

Considerando o tamanho e a complexidade da burocracia do país, é até surpreendente o desempenho da Caixa na distribuição da ajuda emergencial de R$ 600 a trabalhadores informais (até quinta-feira, 23/04, o depósito já tinha caído na conta de mais de 33 milhões de brasileiros). Ainda mais levando em conta que, lamentavelmente, milhões de pessoas que não teriam direito ao auxílio se cadastraram no programa mesmo assim.

As regras foram exaustivamente divulgadas, mas, segundo o DataPrev, nada menos que 30% dos pedidos foram inabilitados. Em 14/04, dos 73,4 milhões de inscritos no Cadastro Único, somente 51,3 milhões tinham direito; 22,1 milhões foram barrados porque têm carteira assinada, recebem pensão ou aposentadoria, recebem auxílio-desemprego etc. O tempo que a Caixa levou para analisar esses pedidos certamente sobrecarregou o sistema e retardou a liberação dos recursos para quem realmente precisa.

Outros problemas aconteceram: longas filas e aglomerações diárias na porta de agências bancárias, facilitando a contaminação pelo Covid-19; mães que são chefes de família enfrentando dificuldades para sacar; suspensão de outros benefícios em alguns municípios; e os inevitáveis (mas nem por isso menos angustiantes para quem está na ponta que precisa) problemas técnicos no aplicativo.

Mas o problema mais grave foi outro: por maior que tenham sido a competência e o empenho dos envolvidos, 5,5 milhões de brasileiros que teriam direito ao auxílio simplesmente não conseguem acessá-lo. É um exército de brasileiros invisíveis, para quem a prioridade deveria ser: não deixar que passem fome.

Para essas pessoas, um programa maciço de distribuição de cestas básicas seria muito mais eficaz que tentar encontrar maneiras de fazer o dinheiro chegar até elas. Até porque os obstáculos logísticos de distribuir alimentos não devem ser maiores que as exigências legais e as dificuldades burocráticas – compreensíveis, em um país com tantos desvios – para se distribuir dinheiro público.

O que me leva de volta ao tema da Renda Básica Universal. Recapitulando: a adoção da RBU não se somaria a outros programas de garantia de renda mínima, como o Bolsa Família e os “vales” disso e daquilo, que seriam extintos. Sua vantagem seria, justamente, a simplificação, eliminando a necessidade de coleta e monitoramento permanente de informações dos beneficiados. A RBU reduziria a burocracia e os custos de transação envolvidos em programas sociais – comprovação de pobreza, fiscalização de contrapartidas, complexidade do cadastramento e possíveis (no Brasil, prováveis) fraudes.

Além disso, a RBU mitigaria efeitos perversos da sobreposição de auxílios, como a armadilha da pobreza: em alguns programas, como o beneficiário deixa de ser elegível se começar a trabalhar, ele prefere ficar refém da ajuda – não por preguiça, mas porque está recebendo um incentivo errado, como se depender economicamente do Estado fosse a sua condição natural.

Mas a RBU criaria outros problemas. Por exemplo, ela entraria no cálculo de quem emprega: sabendo que a renda do funcionário será complementada pelo Estado, um empresário pode passar a oferecer salários menores – não por maldade, mas para maximizar o lucro de seu negócio. Ou seja, a RBU poderia redesenhar, para pior, as relações contratuais existentes, sem melhorar a vida de quem ganha pouco. Além disso, o aumento inevitável dos impostos dos 30% que pagariam mais (incluindo pequenos empreendedores que já vivem com a corda no pescoço) para que os outros 70% pudessem receber representaria um desestímulo a empreender, produzir e trabalhar.

Para ser levada a sério, qualquer proposta de RBU terá que dar respostas satisfatórias para os seguintes problemas – que refletem os diferentes custos (não apenas financeiros) da medida:

  1. O custo propriamente dito:

Mesmo para países ricos, a implementação da RBU com um valor minimamente eficaz teria custos proibitivos. Nos Estados Unidos, eles já foram estimados em US$ 3,9 trilhões ao ano. No Reino Unido, o equivalente a US$ 210 bilhões. Por isso mesmo, programas-piloto foram abandonados em diferentes países. No Brasil, onde o déficit primário em 2019 superou os R$ 80 bilhões, seria algo simplesmente inviável.

A RBU pode até funcionar em casos muito específicos, como o Alasca, em função de características econômicas e demográficas particulares, e por um período limitado de tempo. Mas outras experiências que costumam ser citadas como bem-sucedidas diferem consideravelmente, no alcance e nas regras, do conceito da RBU – e mesmo assim foram rejeitadas por sua inviabilidade econômica, como aconteceu na rica Suíça.

2. O impacto do mercado de trabalho:

A RBU reduziria a motivação dos desempregados para procurar emprego e a motivação dos já empregados para trabalhar, comprometendo a produtividade da economia e gerando parasitismo social. Como os empregadores teriam uma parcela maior de sua própria renda abocanhada pelos impostos, também seriam desestimulados a crescer, investir e inovar – e seriam estimulados a pagar salários mais baixos.

3. A captura política:

Não obstante a relevância dos dois fatores acima, talvez o mais grave argumento contra a adoção da RBU no Brasil, considerando a nossa História recente, seja o risco de apropriação política do programa, com o objetivo de transformá-lo em ferramenta de controle social e colocá-lo a serviço de um projeto de perpetuação no poder. Independente da ideologia, o grupo político beneficiado não será necessariamente honesto nem bem intencionado.

A experiência demonstra que, em situações de precariedade, as pessoas vendem muito barato sua liberdade (basta olhar para Cuba ou para a Venezuela). Queijo grátis só se encontra em ratoeira. Cabe citar aqui o próprio Milton Friedman, que defendeu uma forma específica de Imposto de Renda Negativo, mas também advertiu: “uma sociedade que coloque a igualdade acima da liberdade terminará sem as duas”.

Voltando ao momento atual: a distribuição direta de dinheiro, embora possa funcionar emergencialmente, não está chegando no bolso daqueles mais necessitados, que não têm sequer conta bancária, documentos regulares e acesso à internet. Se bem planejada, tanto para atingir o objetivo imediato de mitigar os efeitos da pandemia quanto como um programa de longo prazo, a disponibilização de cestas básicas preveniria a fome sem gerar os efeitos adversos citados acima. A recessão que se avizinha torna esse debate urgente e necessário.

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