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Crise da classe média ameaça narrativa da elite de esquerda
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Já há mais de 20 anos, o geógrafo francês Christophe Guilluy vem fazendo análises originais e provocadoras sobre as transformações em curso na sociedade francesa, particularmente no que chama de “França periférica” e na sua relação com as elites. “O fim da classe média” (no original, “No society”) coroa e radicaliza sua reflexão sobre o tema em um momento mais que oportuno.

O objeto da investigação de Guilluy não é exatamente o processo (real) de achatamento das classes médias, com o chamado efeito “ampulheta”: um estreitamento do meio da pirâmide social e o decorrente inchaço da base. Seu livro trata de um fenômeno mais complexo: as implicações políticas do abismo crescente entre as elites e o resto da população. Isso porque a existência de uma classe média saudável é fundamental para a economia, uma vez que ela sustenta, por meio do consumo e dos impostos, investimentos em saúde, educação e outros serviços.

Mas, além de ser o motor do crescimento econômico, Guilluy destaca outro papel, tão ou mais importante, da classe média: ser portadora e reprodutora daqueles valores e costumes compartilhados que dão forma e identidade a uma sociedade. Privados desse papel de cimento e pilar da estabilidade social, cada vez mais endividados e desmoralizados, os integrantes da antiga classe média se tornam atores importantes de uma crise que se manifesta de diferentes maneiras: no déficit de representação política, na atomização e etnização dos movimentos sociais, na gentrificação das metrópoles etc.

Ainda que o livro aborde questões especificamente europeias (ou, mais especificamente ainda, francesas), como o impacto dos fluxos migratórios no cenário político da França – Guilluy apresenta ideias que podem ser aplicadas ao exame da sociedade brasileira. De forma contra-intuitiva, ele sugere, por exemplo, que as crescentes tensões e paranoias identitárias, longe de representar um empoderamento das minorias, contribuem para reforçar a sua segregação, preservando os privilégios do “mundo de cima”.

Mesmo quando adotam um discurso de esquerda, argumenta o autor, as elites continuam protegidas em suas bolhas e se sentem cada vez menos ameaçadas por reivindicações de uma classe organizada, já que os trabalhadores foram divididos em uma miríade de movimentos de nicho, em guerra permanente uns contra os outros. A racialização dos problemas sociais representa, dessa forma, uma ferramenta de manutenção da estrutura social, não de sua contestação.

As classes populares se desiludiram com a narrativa falsamente progressista vendida pelo mundo acadêmico e pela mídia

Esse processo apresentou, contudo, um efeito colateral inesperado: as classes populares – na França como no Brasil – se desiludiram com a narrativa falsamente progressista vendida pelo mundo acadêmico e pela mídia. Para perplexidade das elites intelectuais que pretendem falar em seu nome, foram os mais pobres que elegeram Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil, além de terem aprovado o Brexit no Reino Unido. Essas pessoas não são burras nem estúpidas: elas simplesmente se cansaram de ser enganadas.

Inesperadamente, à medida que aumentou em volume, engrossada por aqueles que perderam seus empregos e viram seu poder de compra diminuir, a hostilidade dessa classe média empobrecida se voltou contra a esquerda limpinha, que, fechada em suas cidadelas (geográficas e mentais), mantém privilégios e o tom superioridade moral, sem perceber que sua narrativa não convence mais. É o que vem acontecendo em diferentes países da Europa e também no Brasil, a julgar pelos resultados das últimas eleições.

Christophe Guilluy, autor de "O fim da classe média"
Christophe Guilluy, autor de "O fim da classe média"

Esse fenômeno explicaria a impressionante base social que apoia incondicionalmente Jair Bolsonaro, por mais que a mídia tente sabotar e jogar contra: a cada nova pesquisa de opinião se confirma a impressão de que cerca de 1/3 da população continuará apoiando o presidente, aconteça o que acontecer. Essa base de apoio – aliás, semelhante em tamanho àquela que sustentava Lula – simplesmente não acredita mais na mídia nem nos partidos, preferindo apoiar quem fala sua língua e comparece de forma objetiva para resolver os problemas do dia-a-dia (daí, também, a força política dos evangélicos.

As classes populares estão votando em quem defende de forma clara ideias e valores semelhantes aos seus, em relação à família, comportamento, religião etc. Podem chamar esses políticos de populistas, o povo não está nem aí (da mesma forma que não estava quando o populismo vinha da esquerda, diga-se de passagem). Mas parece que as classes midiática e acadêmica ainda não entenderam isso.

O discurso politicamente correto não beneficia nem protege as minorias, ao contrário: ao vitimizá-las, reforça sua segregação

Surge então um ressentimento dessas elites progressistas – da “burguesia cool”, como escreve o autor – em relação ao povo, fenômeno ilustrado pela forma pouco lisonjeira como Hillary Clinton se referiu aos eleitores de Donald Trump durante a campanha eleitoral de 2016: “São pessoas deploráveis”. É exatamente esta a opinião dos intelectuais e artistas sobre os mais de 55 milhões de eleitores de Bolsonaro. Alguém duvida?

Daí a histeria e a recusa dessas elites a aceitar os resultados eleitorais, tentando deslegitimá-los o tempo inteiro – é assim com Trump, com o Brexit e com Bolsonaro. Em nome da tolerância e da democracia, adotam um discurso de “ódio do bem” contra a maioria que ousou discordar e desobedecer à interdição de qualquer pensamento divergente. A esquerda deslegitima assim a vontade popular: ela está menos preocupada com a democracia e a justiça social do que com a disseminação de discursos de ódio, porque continuam apostando no “quanto pior melhor”.

A questão da imigração é paradigmática na França e outros países europeus: abrir as portas para imigrantes não afeta os mais afluentes a elite de consciência limpinha, já que esses imigrantes irão morar nas periferias das grandes cidades, onde já faltam empregos e serviços públicos. É a elite que apoia hipocritamente a ideia de uma sociedade aberta, porque vive na segurança de suas cidadelas protegidas, não nas vizinhanças onde se concentra a imigração, que sofrerão diretamente as consequências.

São fenômenos como esse, sugere o autor, que empurram as classes populares para a direita, embora seja sempre a esquerda que afirme falar em seu nome. A consequência é uma sociedade fraturada, na qual a mídia e a academia se distanciam cada vez mais do mundo real.

Nesse sentido, apesar de ser ele próprio um pensador à esquerda, mais preocupado com as desigualdades sociais que com as liberdades individuais, Guilluy adota um discurso que tem várias interseções com a direita conservadora – como a defesa de uma regulação da imigração. Sintomaticamente, usando expressões como “antifascismo de araque”, seu livro foi elogiado por jornais de direita, como “Le Figaro” e atacado por publicações de esquerda, como o “Libération”.

Mais conservadora e mais esperta do que supõem os intelectuais e artistas (dizer que são de esquerda seria um pleonasmo), essas classes populares perceberam o abismo entre o discurso e a prática daqueles que afirmam falar em seu nome, mas perderam todo contato real com os dramas e valores do povo real. Elas não engolem mais a imposição de uma agenda por parte de uma elite que os considera “pessoas deploráveis”, que se vende como igualitária mas produz, na prática, uma segregação ainda maior, pois joga pobres contra pobres, raças contra raças, gêneros contra gêneros.

O discurso paternalista e politicamente correto não beneficia nem protege as minorias nem as classes mais humildes, ao contrário: ao vitimizá-las, esse discurso as mantém à margem do modelo social, reforçando a sua segregação. Nesse sentido, a etnização da questão social se deu em detrimento daquilo que verdadeiramente importa: a discussão sobre emprego e renda e as estratégias para integrar os mais vulneráveis a um sistema produtivo que lhes dê dignidade e trabalho – discussão que se torna ainda mais urgente no contexto da pandemia de Covid-19.

“O fim da classe média – A fragmentação das elites e o esgotamento de um modelo que já não constrói sociedades” Editora Record, 178 pgs. R$ 59,90

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