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Envenenar inimigos políticos é um esporte nacional na Rússia
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Na manhã da quarta-feira passada, 20/08, um avião monomotor que ia de Tomsk, na Sibéria, para Moscou precisou fazer um pouso de emergência em Omsk. Motivo: o passageiro Aleksei Navalny, hoje o líder mais incômodo da oposição a Vladimir Putin, passou mal, apresentando sintomas de envenenamento. Desde então, Navalny está entre a vida e a morte, internado na UTI de um hospital siberiano, em estado de coma e respirando por aparelhos. Criador da Fundação Anticorrupção, ele vinha protestando contra a reforma constitucional promovida por Putin para se perpetuar no poder.

No momento em que escrevo, o envenenamento de Navalny ainda não foi confirmado (nem desmentido). Mas não terá sido o primeiro nem o último. Desde a revolução de 1917, o uso de veneno em operações clandestinas para eliminar adversários políticos é quase um esporte nacional na Rússia. Essa longa tradição foi tema do livro “O laboratório dos venenos – A indústria do assassinato político na Rússia, de Lenin a Putin”, de Arkady Vaksberg (editora Nova Fronteira).

Também autor de “A Máfia soviética”, “Stálin contra os judeus” e “O assassinato de Maxim Gorky”, entre outros livros sobre os horrores do regime comunista (todos censurados na Rússia), Vaksberg apresenta em “O laboratório dos venenos” detalhes impressionantes sobre as atividades do “Gabinete Especial”, o departamento secreto criado em 1921 por Lenin para lidar com os “inimigos do povo”, com a justificativa de que "tudo o que serve à causa da revolução é moral".

(Ironicamente, entre as vítimas de envenenamentos patrocinados pelo Estado soviético está a própria viúva de Lenin, Nadezhda Krupskaya: ela morreu durante o banquete preparado para comemorar seus 70 anos, em 1939, após comer uma fatia do bolo enviado pelo camarada Stálin.)

Inicialmente comandado pelo médico Ignatii Kazakov, o Gabinete Especial foi um órgão de Estado, que teve como chefes Genrikh Yagoda, Vyacheslav Menzhinsky, Grigory Mairanovsky e Vsvelod Merkulov, até ser subordinado ao cruel Lavrenty Beria, que almejava suceder Stálin no poder. Mas foi o químico Mairanovsky quem criou os venenos mais letais e eficientes. Escreve Vaksberg: “Em um certo número de casos, os envenenamentos são praticados de tal forma que podem se fazer passar por uma doença que conduz o paciente à morte natural”.

Beria, por sua vez, dirigiu pessoalmente experimentos em presos políticos usados como cobaias humanas, para testar a eficácia dos venenos, em busca da substância perfeita – sem sabor nem cheiro e indetectável nas autópsias, para não deixar pistas.

Com o tempo, o esquema se sofisticou: as mais diferentes substâncias foram testadas, dos venenos tradicionais a metais radioativos e bactérias (como bacilos da peste bubônica) introduzidas e chocolates e ovos. Os laudos dos legistas apontavam invariavelmente para causas naturais: insuficiência cardíaca, suicídio resultante de depressão psíquica, infecções variadas. Muitas pessoas morreram nas mãos de médicos e enfermeiros arregimentados pelo Gabinete Especial.

Há quem acredite que o próprio Stálin foi vítima de envenenamento. Os historiadores russos Anton Antonov-Ovseenko e Edvard Radzinsky – este autor de uma biografia muito boa de Nicolau II, “O último Czar” – afirmam que, a mando de Lavrenty Beria, então chefe da NKVD (o serviço secreto precursor da KGB), um guarda-costas teria envenenado o grande líder. Motivo havia: Beria e outros líderes da velha guarda, como Molotov, temiam, com razão, ser expurgados e executados a mando de Stálin, cada vez mais paranoico em seus últimos anos de vida. O livro de memórias de Svetlana Alliluyeva, filha de Stálin, corrobora essa teoria.

O fato é que, logo depois da morte de Stálin, em 1953, Beria foi preso e processado por "atividades criminosas contra o partido e o Estado". Condenado à morte, foi executado em dezembro daquele ano.

Um caso interessante é o do comunista americano Isaiah Oggins. Depois de servir por anos ao serviço secreto soviético como espião em diferentes países europeus, em 1939 Oggins foi acusado de traição, preso em Moscou e enviado para um Gulag – onde apodreceu por oito anos, antes de ser discretamente envenenado com curare, uma substância que provoca dores horríveis e mata em 15 minutos. O próprio Mairanovsky injetou o veneno, porque os Estados Unidos faziam pressão para repatriar Oggins, e o regime soviético temia que ele pudesse revelar segredos aos americanos.

A lista de vítimas de assassinato político com uso de veneno é longa e inclui militares de alta patente (como o general Alexander Kutepov), comunistas civis acusados de traição (como o georgiano Nestor Lakoba), cientistas (como o biólogo Nikolai Koltsov), intelectuais (como o escritor Boris Pilniak), políticos (como o tcheco Jan Masaryk) e até um arcebispo – o ucraniano Theodore Romzha, assassinado em 1947 com uma injeção aplicada por uma enfermeira. Antes de ser assassinada com cinco tiros de pistola em 2006 (no dia do aniversário de Putin), a jornalista Anna Politkovskaia também sofreu uma tentativa de envenenamento, com um chá servido durante um voo.

O uso desse método para a eliminação de rivais está longe de ser coisa do passado: segundo Vaksberg, trata-se de uma "herança espiritual que Putin não consegue nem deseja abandonar". Nos últimos anos, os casos notórios de envenenamento com motivação política incluem Viktor Yushchenko, ex-presidente da Ucrânia, e o jornalista (e ex-agente da KGB) Alexander Litvinenko.

Em 2004, no meio de uma campanha eleitoral, Yushchenko sobreviveu a uma tentativa de envenenamento com dioxina, uma substância extremamente tóxica, mas ficou com o rosto desfigurado e sequelas graves no fígado e no pâncreas. Litvinenko não teve a mesma sorte: em 2006, ele foi envenenado no sushi bar de um hotel em Londres ao tomar uma xícara de chá contaminada com Polônio-210 – uma substância radioativa usada apenas em instalações nucleares. Antes de morrer, Litvinenko escreveu uma carta acusando Putin de ser o mandante do seu assassinato.

O caso mais interessante descrito em “O laboratório dos venenos” é certamente o do escritor dissidente búlgaro Georgi Markov. Em 1978, em Londres, enquanto esperava o sinal abrir para atravessa uma rua, Markov sentiu uma fisgada na coxa: um agente secreto russo usou a ponta envenenada de um guarda-chuva para cometer o assassinato. Além de guarda-chuvas pontiagudos, também já foram usados isqueiros com gás venenoso, telefones contaminados com substâncias tóxicas e até papéis de parede banhados em arsênico.

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