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O bom-mocismo ‘fake’ é o câncer do nosso tempo
| Foto: Pixabay

O bom-mocismo fake é o câncer do nosso tempo. Uma geração inteira está aprendendo, em anos decisivos de sua formação, que a moral é uma questão de aparência e de apoio dos pares. O certo é aquilo que rende curtidas nas redes sociais. O errado é aquilo que o professor de História lacrador, a blogueirinha da moda ou a Anitta dizem que é errado.

Essa geração de Teletubbies progressistas vai apanhar muito da vida. Porque, no mundo real, não é assim que as coisas funcionam. Desconfio que, quando os boletos começarem a chegar, muita gente vai perceber que lacração e mimimi politicamente correto não pagam contas.

Falo dos boletos reais, mas também metaforicamente, porque não é só em dinheiro que a vida cobra suas faturas. Ao mesmo tempo vítima e agente de um experimento social tão irresponsável quanto ambicioso, essa geração está sendo enganada e se compraz no próprio engano: está comprando gato por lebre, e o preço vai ser alto. Mas a conta só vai chegar lá na frente.

Quando a conta chegar, os neo-Teletubbies vão aprender, da pior maneira, que quem empreende, quem gera empregos e quem trabalha duro não gosta de quem posa de vítima para obter privilégios, nem de quem ostenta virtude, nem de quem defende a censura e a perseguição, nem de quem posa de indignado para ficar bem na fita, nem de quem aponta o dedo, nem de quem se une para cancelar e esfolar desafetos em grupos de WhatsApp, nem de quem se julga, por deformação ideológica, detentor do monopólio da bondade, nem de quem se diz socialista sem nunca ter andado de ônibus.

Outra coisa: uma geração que aprendeu que não existem deveres, apenas direitos, não está preparada, por exemplo, para engolir os sapos inevitáveis em qualquer início de carreira. Ainda mais com um diploma mequetrefe da faculdade muquirana da esquina, aberta às pressas para faturar um trocado do governo.

(Porque hoje é assim: sobretudo nos cursos de Ciências Humanas, a faculdade finge que ensina, o aluno finge que aprende, e o governo paga para a faculdade fingir que ensina para alunos que fingem que aprendem. Aí o jovem incapaz de interpretar texto se forma em lacração e posta, muito orgulhoso, o diploma na internet – como se objetivo de fazer um curso superior fosse ganhar um diploma para ostentar nas redes sociais. Não tem como dar certo.)

Para a geração do bom-mocismo fake (fenômeno que, no Rio de Janeiro, também é conhecido como Síndrome da Praça São Salvador; os leitores cariocas entenderão), não existe debate, nem contraditório, nem convívio com a diferença: ela pensa por meio de clichês e frases feitas. Reage a cada assunto polêmico obedecendo bovinamente a um comando tácito, geralmente resumido em um slogan de fácil assimilação

Por exemplo, rejeitaram sumariamente a proposta da Escola sem Partido com a frase feita “Escola sem pensamento crítico não é escola” – sem entender que, justamente, o pensamento crítico não tem como prosperar em escolas com partido, com professores que doutrinam em vez de ensinar, que é o que acontece hoje.

“Meu corpo, minhas regras” vale para o aborto, não para a vacina. Mas por quê? Porque não. É a moral total-flex.  

Pois bem, essa mesma geração que passou dois anos escorraçando moralmente qualquer pessoa que levantasse questões sobre a eficácia das vacinas, das máscaras ou dos lockdowns no combate à pandemia de Covid-19 (os Teletubbies Tink Winky, Dipsy, Laa-Laa e Po, aliás, até voltaram do esquecimento para postar no Twitter que foram “vacinades”) agora volta a gritar com todas as forças o slogan “Meu corpo, minhas regras” para defender o aborto.

Mas sequer percebem a contradição. Porque, justamente por ser fake, o bom-mocismo fake anda de mãos dadas com outro câncer do nosso tempo, a moral total-flex: uma moral ad hoc, prêt-à-porter, que não é baseada em princípios, mas na conveniência do momento. “Meu corpo, minhas regras” vale para o aborto, não para a vacina. Mas por quê? Porque não.

O aborto voltou à pauta estes dias por causa da anunciada revisão, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, da decisão histórica de 1973 que legalizou a interrupção da gravidez, com base, vejam só, no direito ao respeito à vida privada da gestante (sem reconhecer qualquer direito do feto à vida, consequentemente).

Instantaneamente, a chave mental da geração do bom-mocismo fake foi virada do “Submetam-se ao governo que ordena que você tome várias doses de vacina e fique confinado em casa” para “Rebelem-se contra o governo que quer interferir no seu direito de abortar”.

O caso Roe x Wade, do qual até ontem quase ninguém no Brasil tinha ouvido falar, é o assunto do momento. Para os especialistas do Facebook e do Instagram, o importante, como sempre, é tomar um partido e ostentar virtude, sem perder tempo tentando entender por que o Supremo americano deve reverter a decisão de 1973. Vamos aos fatos:

Em meados dos anos 60, uma jovem chamada Norma Leah Nelson procurou um tribunal do Texas reclamando o direito, então inexistente, de abortar por mera vontade da gestante. Ela vinha de uma família que hoje seria classificada como disfuncional: o pai abandonou a esposa quando Norma tinha 13 anos; a mãe era uma alcoólatra inveterada.

Aos 16, Norma se casou, engravidou e se divorciou em seguida, alegando abusos do marido. Teve uma filha, Cheryl, que foi criada pela avó. No ano seguinte, engravidou de novo, desta vez dando à luz um menino, que entregou para adoção. Poucos anos depois, a jovem decidiu se assumir homossexual, para escândalo de sua mãe, que ganhou a custódia da neta.

Estamos em 1969: agora com 21 anos (e depois de se assumir lésbica), Norma engravidou pela terceira vez. Ela queria abortar, mas o aborto era ilegal no Texas. Orientada por duas advogadas abortistas, Sarah Weddington e Linda Coffee, Norma alegou que tinha sido vítima de um estupro, que, hoje se sabe, nunca aconteceu.

Mesmo transcorrendo com base em uma alegação mentirosa, o julgamento foi não apenas favorável a Jane Roe (nome fictício usado para proteger a intimidade de Norma) como anbriu as portas para uma nova interpretação da 9ª Emenda da Consituição americana, que trata do direito à privacidade, abrindo as portas para a prática de dezenas de milhões de abortos cometidos nos Estados Unidos desde então.

O lado derrotado foi representado pelo advogado Henry Menasco Wade, daí o caso ter ficado famoso como Roe x Wade. No próximo artigo, vou analisar a justificativa para a decisão que marcou jurisprudência no país e para a revisão do caso, 50 anos depois.

 

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