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O dia em que Marília Mendonça foi cancelada
| Foto: Reprodução Instagram

Pouca gente se lembra, mas há pouco mais de um ano, em 10 de agosto de 2020, a hashtag #MaríliaTransfóbica se tornou o assunto mais comentado no Twitter.

Sim, a Marilia em questão era a cantora que foi vítima de um trágico acidente aéreo na última sexta-feira.

Em uma live na internet, ela tinha feito uma piada boba sobre um músico da sua banda, que teria ficado com uma “mulher trans” em uma boate de Goiânia, provocando risadas entre os colegas que participavam da transmissão.

Isso bastou para disparar o processo de julgamento moral e execução sumária que já se tornou rotineiro nos tempos sombrios em que vivemos.

A rainha da sofrência foi massacrada nas redes sociais pelo exército do ódio do bem, pelas matilhas da lacração progressista cuja razão de viver é tentar destruir reputações alheias – frequentemente com apoio da grande mídia e de empresas patrocinadoras, que se curvam a campanhas orquestradas por pequenos grupos ideologicamente motivados.

Não precisa muito. Se alguém não aprecia (ou não entende) uma piada que você conta, você tem que se ajoelhar no milho e pedir perdão à malta ensandecida, que vem pra cima babando de ódio, exigindo retratação e punição exemplar, em um ritual que lembra os julgamentos encenados da época de Stálin.

Marilia seguiu o protocolo, pedindo desculpas em um post no Twitter: “Pessoal, aceito que fui errada e que preciso melhorar. Mil perdões. De todo o coração. Aprenderei com meus erros. Não me justificarei.”

Tudo o que a cantora fez foi brincar com um músico de sua equipe que teria ficado com “a mulher mais bonita da vida dele”, sem saber que ela era trans. Mas ninguém pode brincar com isso, porque, como se sabe, está decretado que um homem biológico que se define como mulher é tão mulher quanto uma mulher biológica, e quem não concordar com isso é um criminoso que está incentivando o assassinato de pessoas trans e merece ser linchado em praça pública.

Curiosamente, os virtuosos que atacaram Marília Mendonça se sentiram moralmente autorizados a agredi-la com as piores ofensas – que não cabe reproduzir aqui, em respeito à memória da cantora; basta dizer que muitos ataques misturavam pesados palavrões com piadas gordofóbicas.

Ou seja: na cabeça dessas pessoas que se julgam detentoras do monopólio da virtude, fazer uma brincadeira sobre um colega de equipe que teria ficado com uma mulher trans não pode: é crime hediondo, comparável ao homicídio. Mas dirigir as piores ofensas a uma cantora por sua forma física está liberado.

Todos esses casos têm uma dinâmica comum: uma vez identificado o alvo, as milícias do bem equiparam uma conduta ou fala banal e inofensiva a um crime real, a ser repudiado por todos. E muita gente inocente cai de boa-fé na armadilha, aderindo ao linchamento

O episódio expõe a natureza doentia e extremamente perigosa da guerra cultural em curso na sociedade. Do alto da sua superioridade moral, o progressismo lacrador se concedeu licença especial para odiar, perseguir e agredir quem bem entender. Resumindo: estão mandando você calar a boca e aceitar quietinho as regras que eles impõem de forma autoritária – e muitas vezes, para não se aborrecer ou não sofrer sanções sociais, você se cala.

De agosto de 2020 para cá, a situação só piorou. Linchamentos morais na internet estão acontecendo em um ritmo avassalador. O caso do jogador de vôlei Maurício de Souza não foi o último: somente na semana passada, dois novos cancelamentos chamaram a atenção.

O ator Chris Pratt, protagonista de “Os Guardiões da Galáxia” e outros filmes de sucesso, teve a ousadia de postar uma foto com sua esposa Katherine, que estava fazendo aniversário, acompanhada do texto:

“Encontre alguém que olhe para você assim! Você sabia!? Nós nos conhecemos na igreja. Ela me deu uma vida incrível, uma filha linda e saudável, ela mastiga tão alto que às vezes eu coloco meus fones de ouvido para abafar, mas isso é amor”.

O ator Chris Pratt com a esposa: cancelado
O ator Chris Pratt com a esposa: cancelado

A turma do ódio do bem ficou revoltada:

“Chris Pratt agradeceu sua atual esposa por lhe ter dado ‘uma filha saudável’, sendo que ele tem um filho de 9 anos com alguns problemas de saúde com a ex-mulher, Anna Faris. Sinto muito pela Faris e pelo Jack por ter esse horrível na vida deles”, criticou uma internauta. Outro seguidor foi além, intimando a Marvel a demitir o ator: “A Marvel está esperando o que para chutar o Chris Pratt, hein?” Uma terceira escreveu: “Meu deus, isso aqui é muito bizarro!”

Ou seja, por ter feito um post em homenagem à sua mulher no dia do aniversário dela, sem fazer referência ao filho do primeiro casamento, Chris Pratt foi tratado como um criminoso pelos virtuosos progressistas que acharam essa conduta “bizarra”, passível de ser punida com a demissão do ator.

No segundo caso, já comentado neste excelente artigo, Bruna Marquezine foi atacada por se fantasiar de enfermeira em uma festa de Halloween. Ela sofreu críticas não somente de muitos de seus 10 milhões de seguidores no Instagram, como também do Cofen – Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo. Motivo: a atriz estaria comprometendo a imagem de profissionais sérios da área da Saúde.

A atriz Bruna Marquezine: cancelada
A atriz Bruna Marquezine: cancelada

O Cofen divulgou uma nota afirmando ser “...inadmissível que a fantasia de enfermeira, utilizada em carnavais, festas de halloween e sátiras, continue sendo tolerada pela sociedade, sobretudo por formadores de opinião”. “Repudiamos veementemente essa conduta”, conclui a nota.

Acho que o mais adequado seria pedir logo para proibirem toda e qualquer fantasia, já que sempre haverá um grupo que se sentirá potencialmente ofendido: enfermeiras, salva-vidas, policiais, bombeiros, já que todos são profissionais sérios que têm o direito de julgar inadmissível que foliões transformem sua profissão em fantasia. E não vou nem falar nos índios e bruxas, que sofrem com a apropriação cultural cada vez que uma criança coloca um cocar ou um um chapéu de feiticeiro no carnaval do bairro.

Todos esses casos têm uma dinâmica comum: uma vez identificado o alvo, as milícias do bem equiparam uma conduta ou fala banal e inofensiva a um crime real, a ser repudiado por todos. E muita gente inocente cai de boa-fé na armadilha, aderindo ao linchamento sem sequer parar para pensar no contexto ou naquilo que a pessoa realmente disse ou fez – e sem se dar conta da motivação política e ideológica, da agenda secreta por trás de quem coordena essas práticas.

Está em marcha um processo muito perigoso: usando como escudo bandeiras legítimas em sua origem – o combate à discriminação, o respeito à diferença, a luta pela igualdade de direitos, a defesa do meio-ambiente, a redução de desigualdades sociais etc – grupos estão reabilitando a censura e o linchamento como práticas aceitáveis ou mesmo necessárias. É a polícia do pensamento em ação, sempre ponta a patrulhar e perseguir.

É uma patologia social. Criaram um monstro, e o monstro saiu do controle: ele está se voltando agora contra quem ajudou a criá-lo. Estamos, enfim e cada vez mais, vivendo em uma ditadura, mas a ditadura não está onde se pensa. Nada de bom pode vir daí.

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