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TRINKETS
TRINKETS| Foto: Allyson Riggs/Netflix

Sobretudo quando é voltada para o público adolescente, uma série da Netflix pode ir muito além do mero entretenimento: pode contribuir de forma decisiva para disseminar e apresentar como naturais modelos de comportamento que se tornam referência e exemplo a ser seguido. Que referências e exemplos uma série como “Gatunas”, já em sua segunda temporada, está oferecendo para jovens espectadores ainda em fase de formação e sedimentação de valores?

Elodie, Moe e Tabitha moram em Portland, têm 16 anos e um hábito em comum: furtar. O leitor apressado já deve estar concluindo: “Já sei, elas são vítimas da sociedade opressora e do capitalismo heteronormativo que as obrigam a se apropriar do alheio para sobreviver”. Pior que não. São adolescentes de classe média que têm carro, frequentam baladas, seguem as tendências da moda e estudam em uma escola legal. Obviamente, vivem aqueles pequenos conflitos e dramas familiares que todos os adolescentes enfrentam desde sempre, mas nada particularmente traumático – a riquinha Tabitha, por exemplo, vê tudo desmoronar quando descobre que seu pai traiu sua mãe (Oh!).

Em suma, Elodie, Moe e Tabitha furtam, basicamente, porque gostam – e sempre haverá um pretexto para fazer o que se gosta (especialmente quando é algo errado). Assista abaixo ao trailer da segunda temporada de “Gatunas”:

Inspirada em um livro homônimo de Kirsten Smith, “Gatunas” fala, basicamente, sobre o empoderamento feminino por meio do roubo; a série apresenta a cleptomania como algo fofo e natural. Não estou exagerando: um artigo recente exalta o fato de as três protagonistas estarem conquistando seu lugar na sociedade na base da mão grande (“Finding power in Netflix’s Trinkets: Young women steal their way to autonomy”).

Mas não é só isso. Uma breve análise, sequência por sequência, do primeiro episódio da recém-lançada segunda temporada da série revela que “Gatunas” é cheia de cenas que refletem, explicam, legitimam e reforçam a desorientação moral que está marcando a formação de toda uma geração.

Elodie (Brianna Hildebrand), a protagonista de 16 anos, é uma menina fofa e sensível. Está sempre com cara de quem comeu e não gostou, mas até isso é apresentado como algo cool. Ela fugiu de casa, vejam só, para viver uma paixão louca com Sabine, uma cantora de rock pansexual de 30 anos presumíveis, que está fazendo uma turnê com sua banda por várias cidades. Elodie a acompanha e, nas horas vagas, entra em lojas para furtar, o que também é apresentado como uma coisa à toa: é assim que começa o episódio.

Corte para a delegacia: O pai de Elodie está desesperado com o desaparecimento da filha, mas Moe (Kiana Madeira) e Tabitha (Quintessa Swindell) – que sabem que ela fugiu com Sabine – juram de pés juntos que desconhecem o destino da amiga. Porque mentir para autoridades policiais e debochar da angústia de um pai são a coisa certa a fazer. Na cena seguinte, ficamos sabendo que Moe e Tabitha jogaram deliberadamente um carro dentro de um lago, uma atitude muito natural.

Corte para a piscina de um hotel: Elodie toca no ukulele uma canção romântica. Ela furtou o instrumento de um membro da Banda de Sabine, mas isso é apenas um detalhe, a música é tão fofinha que o roubo está justificado.

Que adultos esses jovens se tornarão? Estarão equipados para enfrentar os desafios da vida adulta? O que farão, a quem recorrerão, quando descobrirem que o mundo real é bem diferente de uma série da Netflix?

Corte para uma festinha regada a muito álcool – porque é bacana meninas de 16 anos encherem a cara. Corte para Tabitha na cama com o namorado. Porque é natural adolescentes terem total liberdade sexual.

Corte para Sabine e Elodie depois de um show da cantora. Sabine passa uma cantada em uma fã na frente de Elodie, que fica enciumada e triste. Mas como assim, Elodie, você sabia que Sabine era livre e pansexual! Que sentimento mais reacionário e opressor, o ciúme!

Corte para Moe na festa enxugando uma garrafa de vodca na festa: a culpa do alcoolismo precoce, claro, é dos pais que não a compreendem. Moe chama o amigo para transar com ela em um quarto da casa; o rapaz hesita, mas acaba topando (porque é cool transar com uma menor de idade alcoolizada, certo?). Corte para uma resenha LGBTQQICAPF2K+: Sabine beija outra mulher na frente de Elodie, cada vez mais dominada pelo sentimento heteromachista patriarcal opressor do ciúme.

Corte para um restaurante onde Tabitha acaba de jantar com o namorado. Ele não tem dinheiro para pagar a conta e... propõe saírem sem pagar. Ela acha a ideia bonitinha, mas arriscada, e acaba pagando a conta: Tabitha é uma jovem empoderada e não se importa de pagar (com o cartão de crédito que seus pais opressores deram a ela).

Corte para Elodie chorando. Sem dinheiro e sem ter para onde ir, ela liga para a casa dos pais (claro).  Mas, vejam só, impõe uma condição para voltar para casa – não ser obrigada a frequentar as reuniões de “furtadores anônimos” – onde, aliás, conheceu suas BFFs (“best friends forever”). E não é que o pai opressor concorda?

O episódio termina com Elodie voltando de ônibus para casa, de madrugada. Ela pega da bolsa o ukulele (roubado) e começa a tocar uma musiquinha melosa – sem se importar com o sono dos outros passageiros, claro. Ela chega em Portland já de manhã, mas não vai diretamente para casa: depois de fugir e passar três dias sem dar notícias, ela resolve que a melhor coisa a fazer é se divertir com suas amigas no shopping do bairro, fazendo o que mais gostam: furtar bebidas, roupas, perfumes e produtos de maquiagem.

Etc.

E este foi só o primeiro episódio. A sinopse do segundo é reveladora do que vem pela frente: “Após voltar para casa, Elodie sai com Moe e Tabitha para furtar. O comportamento de Moe preocupa as amigas”. Entenderam a mensagem? O preocupante não é três adolescentes saírem rotineiramente para furtar, como se estivessem indo à praia ou ao cinema; o que preocupa é uma delas estar meio pra baixo.

Fato: muitos adolescentes de cabeça fraca que assistirem à série vão achar bonito e fazer igual. Que adultos esses jovens se tornarão? Estarão equipados para enfrentar os desafios da vida adulta? Terão a estrutura e a base sólida necessárias para a sobrevivência no mundo lá fora? O que farão, a quem recorrerão, quando descobrirem que o mundo real é bem diferente de uma série da Netflix?

E “Gatunas” não é um caso isolado. Séries recentes como “Baby”, que glamouriza e incentiva a prostituição entre adolescentes; “Casa de Papel”, que apresenta jovens assaltantes como heróis e modelos a seguir; ou mesmo “13 Reasons Why” (que, de certa forma, apresenta o suicídio como uma solução válida para dramas adolescentes) – sem falar no longa-metragem “Lindinhas”, que naturaliza a erotização da infância a pretexto de denunciá-la – são outros exemplos edificantes dos modelos de valores morais comportamento ético que estão sendo consumidos pelo público jovem.

Será por acaso?

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