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“Você já pensou o que representa isso em matéria eleitoral?”
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Início de 2003, época do lançamento do Bolsa-Família, no primeiro Governo Lula. O jurista Helio Bicudo, um dos fundadores do PT, pergunta a José Dirceu, então Chefe da Casa Civil, qual é o verdadeiro objetivo do programa. A resposta é clara: “Olha, você já pensou o que representa isso em matéria eleitoral? Nós vamos beneficiar 12 milhões de famílias, por exemplo. 12 milhões de famílias são mais de 40 milhões de votos!”

Quem conta essa história é o próprio Bicudo, no vídeo abaixo, para concluir: “É isso que é o Bolsa-Família. Quer dizer, não há nada mais profundo do que o problema eleitoral. Vocês recebem dinheiro para votar”. Bicudo, como se sabe, rompeu com o PT em 2005, depois do escândalo do Mensalão. Morreu em 2018, aos 96 anos.

É claro que o Bolsa-Família não foi só isso. Mas também foi isso. Temos que abandonar a mania do raciocínio binário. Os aspectos positivos do programa não mudam o fato de que ele foi usado como moeda eleitoral. Uma coisa não anula a outra. A administração da pobreza (não sua diminuição) sempre rendeu votos no Brasil. É triste, mas é assim que funciona.

Basta lembrar que, nos últimos 15 anos, campanha eleitoral após campanha eleitoral, os adversários do PT foram sempre acusados de querer extinguir o Bolsa-Família, explorando de forma desonesta o medo da população mais carente de perder o benefício. O tempo mostrou que era mentira: estavam apenas “fazendo o diabo” para ganhar a eleição, como aliás anunciaram que fariam. Vitorioso, Bolsonaro não só manteve o programa como criou um décimo-terceiro para o Bolsa-Família.

Corte para maio de 2020. Em meio à crise econômica sem precedentes provocada pela pandemia do coronavírus, o presidente da Caixa revela, durante live do presidente Jair Bolsonaro, que serão abertas gratuitamente 50 milhões de contas digitais para os beneficiários do auxílio emergencial de R$ 600 – destinado a desempregados, trabalhadores informais e autônomos e pessoas com renda familiar de até três salários mínimos.

Dias antes dessa notícia, um secretário especial do Ministério da Economia deixou no ar a possibilidade de o auxílio emergencial se tornar permanente. Em nota oficial, o Governo se apressou a negar que isso esteja nos planos. Mas em política, frequentemente, quando algo é desmentido é porque deve acontecer.

Fizesse parte do Governo Bolsonaro, José Dirceu diria, animadíssimo: “Olha, você já pensou o que representa isso em matéria eleitoral? Nós vamos beneficiar 50 milhões de famílias, por exemplo. 50 milhões de famílias são mais de 150 milhões de votos!”

Ninguém sabe ao certo até onde vai a pandemia do coronavírus. Enquanto não aparecer uma vacina – o que pode levar alguns anos, porque há etapas no processo que não podem ser aceleradas – ou enquanto não se descobrir uma medicação ou coquetel de medicações comprovadamente eficaz – o que ainda não aconteceu, por maiores que sejam nossa torcida e nossa esperança – um cenário possível é a sociedade ficar refém de quarentenas ou lockdowns intermitentes, ainda por algum tempo.

É o que prevê, aliás, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz divulgado nesta semana. Não é viável a curto prazo conciliar a chamada imunização de rebanho com a necessidade de achatamento da curva (para que o sistema de saúde não entre em colapso, provocando ainda mais mortes etc). Ou seja, essa situação pode se prolongar. Tomara que isso não aconteça, mas não é totalmente absurdo imaginar um cenário no qual os impactos da pandemia afetem a sociedade brasileira, em alguma medida, até 2022 – ano da próxima eleição para presidente.

Em condições normais de temperatura e pressão, ainda mais em um governo de viés liberal na economia, não se cogitaria estender o benefício emergencial (que poderia ser chamado de Bolso-Família), até porque a conta não fecha: já se calculou que um mês de auxílio custa um ano de Bolsa Família.

Mas não estamos nem estaremos em uma situação normal. No contexto de uma recessão prolongada e sob risco de uma tragédia humanitária, podem ser adotadas soluções extremas, como a continuidade, por um prazo indeterminado, da transferência direta de renda para os mais vulneráveis, que dependem de trabalho informal ou precário para sobreviver.

Ora, o voto da população mais pobre é pragmático, não é ideológico: será sempre daquele candidato que oferecer algum benefício concreto, algum alívio para suas aflições presentes, são esperança para o futuro. A incompreensão dessa verdade elementar foi um dos fatores que levaram ao fiasco da esquerda no Brasil nas duas últimas eleições (para prefeitos em 2016 e para presidente e governadores em 2018).

O caso do Rio de Janeiro em 2016 foi exemplar: com seu discurso progressista, Marcelo Freixo só ganhou em alguns bairros mais ricos da cidade, levando uma surra do evangélico Marcelo Crivella nas regiões mais carentes. Os eleitores pobres estavam fartos de discursos bonitos sobre a transformação da sociedade e queriam soluções práticas para seus problemas imediatos. E o fato é que, frequentemente, quem aparece para ajudar é o pastor que mora ao lado, não o político de esquerda que mora no Leblon. (Freixo, aliás, anunciou esta semana que desistiu de se candidatar a prefeito este ano; nem tudo são más notícias).

Por complicada que hoje pareça a situação de Bolsonaro – os intelectuais, a elite cultural e artística e a classe falante que domina a mídia e a universidade têm certeza absoluta de que ele não terminará o mandato – daqui a dois anos a situação pode estar bem diferente. Sobretudo se um programa de renda básica tiver garantido a sobrevivência de metade da população, nos tempos sombrios que se aproximam. Este seria (ou será) um fator considerável na eleição de 2022. O apoio dos brasileiros mais pobres a Bolsonaro, aliás, já cresceu, segundo a última pesquisa Datafolha. Esses eleitores estão pouco se lixando para eventuais acertos do governo com o Centrão ou as grosserias do presidente: para eles o que importa é ter comida na mesa. Com a inevitável explosão do desemprego, vai importar mais ainda.

Se Bolsonaro conseguir atravessar a tormenta provocada pela pandemia, tormenta que mal começou, pode chegar do outro lado com o país semidestruído, em meio a uma recessão prolongada. Nessas horas, a urgência de evitar o problema social imediato – e seus inevitáveis desdobramentos, como o aumento da violência – costuma prevalecer sobre a racionalidade econômica. Basta pensar na derrota recente de Macri para o populista Alberto Fernández, na Argentina. “Ah, mas a longo prazo isso não pode dar certo”. Pouco importa para o eleitor desesperado. Como disse John Maynard Keynes, “a longo prazo todos estaremos mortos”.

O mesmo voto que reelegeu Lula pode reeleger Bolsonaro: o voto daqueles para quem a garantia de um dinheirinho pingando na conta todo mês é mais importante que qualquer ideologia. É claro que, se for tornado permanente, o auxílio não será só isso. Mas também será isso. Se essa hipótese pode desagradar a muita gente que apoia o governo e critica o assistencialismo, a esquerda, então, ficará enfurecida: imaginem um indignado eleitor do PT acusando o presidente de usar o Bolsa... – ops, o auxílio emergencial-permanente – como ferramenta eleitoral para continuar no poder. Essa ficha parece já estar caindo para Lula, que teme que o benefício empurre para os braços de Bolsonaro parte do eleitorado petista. Já está acontecendo. Pois é, o mundo dá voltas.

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