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A ideia de que o Brasil viveu um período de progresso e tranquilidade durante a ditadura militar foi construída, em parte, pela ação rigorosa e sistemática da censura. Os veículos de comunicação recebiam da Polícia Federal, por telegramas, os fatos ou mesmo temas que não poderiam abordar, tais como tortura, guerrilha, atentados à bomba. O esforço para criar um país fictício vetava até mesmo notícias sobre epidemia de meningite, vazamento de oleoduto, surto de hemorragia em crianças ou importação de carne suspeita.

“Açougueiros e donas de casa comentam que a carne congelada importada do Uruguai tem mau sabor”, dizia uma das matérias cortadas no jornal O Estado de São Paulo antes da sua publicação. Em 1972, foram proibidas expressamente a divulgação de informações sobre um surto de hemorragia em crianças motivado por mosquitos em Altamira (PA) e o vazamento no oleoduto de Cubatão (SP). A epidemia de meningite que assolava São Paulo também foi tema vetado.

Registros sobre a atuação dos censores podem ser encontrados nos arquivos do Serviço Nacional de Informação (SNI), hoje guardados no Arquivo Nacional. Ofício encaminhado pelo diretor-geral da Polícia Federal ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, em janeiro de 1973, relata as atividades do departamento na execução da censura a partir de 1971 (imagens abaixo).

Reprodução/Arquivo Nacional

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Em setembro de 1972, um telegrama da Polícia Federal chegou às redações vetando qualquer tipo de abordagem sobre anistia, políticos cassados, abertura política ou mesmo críticas à crise econômica que já surgia. O chamado “milagre brasileiro”, período de crescimento econômico iniciado em 1968, começava a fazer água. Mas ninguém devia saber disso. A censura havia começado bem antes, com a implantação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968.

Atentados e luta de classes

Apenas entre agosto de 1971 e outubro de 1972, como mostra um documento do SNI, foram barradas notícias sobre 28 casos de “subversão”, como estouro de aparelhos de guerrilheiros em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, a morte do guerrilheiro Carlos Lamarca e choque de policiais com subversivos em São Paulo.

Também foram vetadas notícias sobre líderes da Igreja Católica, como dom Helder Câmara e Pedro Casaldáliga. Foi feita a supressão de um trecho da declaração dos bispos de Goiás que “incitava a luta de classes” no meio rural.

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Havia alguma resistência, mas quase a totalidade dos veículos obedecia as determinações do governo militar. Em setembro de 1972, o diretor do Grupo Estado, Ruy Mesquita, enviou telex ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, protestando contra telegrama da PF que proibia qualquer tema político ou econômico contrário aos interesses da ditadura. “Ao tomar conhecimento dessas ordens emanadas de V. Sa, o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, senhor ministro, pelo Brasil degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer, por um governo que acaba de perder a compostura”.

Reprodução/Arquivo Nacional

O empresário fez ainda um alerta sobre a mudança de rumos da “revolução de 64”, por ele apoiada em seu início: “Todos que estão hoje no poder dele baixarão um dia e, então, senhor ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a revolução de 64 abandonou o rumo traçado pelo seu maior líder, o marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas”.

Informada pelo ministro, a Polícia Federal distribuiu telegrama proibindo a publicação de notícias sobre o telex enviado por Ruy Mesquita. Quase todos os veículos respeitaram a ordem, mas o Correio do Povo e a Folha da Manhã, da empresa gaúcha Caldas Júnior, chegaram a editar a íntegra do telegrama. As edições de 20 de setembro dos dois jornais foram apreendidas.

No dia seguinte, o Correio e a Folha noticiaram: “Polícia Federal apreendeu edições de 20 de setembro”. No Congresso Nacional, o líder da maioria, senador Filinto Muller, negou a existência de censura no país. Disse que as cópias do telex de Mesquita, distribuídas no parlamento, seriam “uma campanha organizada para perturbar a vida pública brasileira”.

Reprodução/Arquivo Nacional

 

A verdade no exterior

A verdade sobre a censura era narrada pelos correspondentes estrangeiros no Brasil. Eles eram vigiados pelos militares, mas continuavam enviando suas reportagens para o mundo. O Centro de Informação do Exército (CIE) registrou, em novembro de 1974, que o jornal americano Washington Post havia publicado reportagem sobre a continuidade da censura no Brasil, que já começava a viver a sua abertura política.

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O jornalista Bruce Handler acompanhou e registrou a rotina de um censor na redação do Estadão. O policial chegava às 11 horas da noite no jornal e lia todas as notícias, determinando o que seria cortado. “Os editores sombriamente retiram tudo aquilo que o censor marca. Eles sabem que, se não o fizerem, um telefonema poderá trazer equipes de policiais armados de metralhadoras portáteis, despejados no edifício para arrancar o papel das rotativas”, escreveu o repórter.

“Assim, a censura – arbitrária, excêntrica e às vezes somente idiota – continua no Brasil, a despeito das promessas feitas pelo novo presidente, general Ernesto Geisel, de que o seu governo militarmente conduzido iria buscar um retorno gradual às normas democráticas”, completou Handler.

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