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Fábrica da Hemobrás em construção, em Goiana (PE), desde 2004.
Fábrica da Hemobrás em construção, em Goiana (PE), desde 2004.| Foto: Divulgação/Hemobrás

A Hemobrás pretendia repetir a doação de plasma para uma empresa privada, como já havia feito em 2017. O material era inservível para a produção de hemoderivados. A demanda chegou ao Departamento Jurídico do Ministério da Saúde, que recomendou, em 16 de setembro, a abertura de licitação, com prevê a legislação. A estatal inicialmente negou qualquer irregularidade nos dois processos, mas acabou abrindo o “chamamento público” para ver se existem outros possíveis interessados na doação.

A denúncia da suposta ilegalidade chegou ao blog por meio de servidores públicos, em 15 de setembro. Os servidores informaram que, em junho de 2017, a Hemobrás havia doado 100 mil bolsas de plasma impróprios para produção de hemoderivados ao Programa Nacional de Controle de Qualidade (PNCQ), pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos. O prejuízo financeiro estimado à administração pública pela doação inicial teria chegado a R$ 1.459.580, em agosto de 2017, segundo informação dos denunciantes.

Mas os servidores afirmaram que “a manobra prosseguiu”. Em maio de 2019 a Hemobrás teria assinado novo termo de doação de plasma, para encaminhar ao PNCQ mais bolsas de plasma, à revelia do corpo técnico do Ministério da Saúde.

Criada em 2004, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, a Hemobrás previa a construção e o início do funcionamento da sua fábrica de medicamentos hemoderivados em três anos, com investimentos de R$ 350 milhões (em valores atualizados). A estatal já recebeu R$ 2 bilhões do governo federal e ainda não concluiu a fábrica. Até dezembro do ano passado, a execução das obras estava em 76%.

“Não existe fraude” mas houve doação

Questionada pelo blog sobre a denúncia, a diretoria da Hemobrás foi enfática: “Não temos conhecimento dessa denúncia. A narrativa carece de vínculo com a verdade. Não existe fraude. Não há do que se falar de ilegalidade”, afirmou a empresa em 5 de outubro.

Mas logo acrescentou: “Houve uma doação de plasma em 2017. Plasma este não apto à produção de hemoderivados, mas que serviria à produção de padrões de controle de qualidade para testes em laboratórios clínicos”. A estatal alegou que, ao invés de trazer prejuízo, a doação, na realidade, impediu que o plasma fosse incinerado ao custo de R$1,20/bolsa.

Acrescentou que a “empresa privada” pertence à Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e desenvolve padrões de qualidade que são usados em todos os laboratórios clínicos do Brasil, “sendo, portanto, serviço de interesse público, pois trazem confiabilidade aos testes clínicos realizados no país”.

A Hemobrás afirmou ainda que, “depois do processo de doação ocorrido em 2017, não existiu outro, portanto, é falsa a alegação que a ‘manobra continuou’ e que esta Diretoria Executiva não tenha feito nada para estancar o fato”. E destacou que tem tratado do tema com o Ministério da Saúde, Controladoria Geral da União e Ministério Público Federal, “com o objetivo normatizar ao consenso da legislação vigente sobre o suprimento dessa matéria prima que não pode ser comercializada”.

Em 5 de outubro, em videoconferência, o diretor de Produtos Estratégicos e Inovação da Hemobrás, Antônio Edson Lucena, responsável pela operação de gestão do plasma da União, reafirmou que não haveria qualquer irregularidade na doação realizada.

"Há interesse público?"

O blog teve acesso a documento sob sigilo da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde que analisou consulta referente à possibilidade de autorização, por parte do ministério, de doação de plasma vencido para uso industrial estocado pela Hemobrás, em alternativa ao dispêndio de recursos para o descarte dessa substância.

A estatal informou que parte do plasma, para o qual já havia sido consentida a doação, não possui documentação sorológica, de formas que as bolsas de plasma estocadas não poderão ser destinadas à alienação com ressarcimento de custos via chamamento público. Assim, solicitou nova autorização ao Ministério da Saúde para proceder um outro processo de doação do plasma estocado, desta vez sem encargos, em favor de instituição privada denominada CNPQ, para absorver essa parte do estoque.

Em 14 de julho deste ano, foi realizada reunião com representantes da Hemobrás, Ministério da Saúde e Consultoria-Geral para “alinhamento das questões fáticas, técnicas e jurídicas”. Em seguida, a Conjur solicitou esclarecimentos à estatal. A Hemobrás informou que, na doação de plasma impróprio para uso industrial, realizado em junho de 2017, “não houve escolha de um beneficiário. O PNCQ buscou a Hemobrás para firmar uma parceria”.

A estatal informou que “há interesse público na doação”, já que reduzirá os custos com o descarte. A conjur perguntou se o PNCQ é uma entidade sem fins lucrativos. A Hemobrás respondeu que o PNCQ é uma empresa limitada, patrocinado pela Sociedade Brasileira de Análises Clínicas, que possui 99% das ações da empresa. O acordo de doação veda à empresa receber vantagens em troca da doação desse plasma.

“Recomenda-se chamamento público”

O relatório da Conjur recomenda que, ainda que haja o enquadramento como dispensa de licitação, "com o intuito de evitar questionamentos, bem como para conferir maior segurança jurídica e impessoalidade, recomenda-se que seja realizado prévio procedimento mínimo de chamamento público". Com isso, outras instituições poderiam apresentar à Hemobrás novas propostas de aproveitamento do plasma.

Na sua conclusão, o parecer da Conjur diz que eventual destinação de plasma inutilizável para fracionamento para “entidade ou instituição privada”, parece demandar, como regra geral, prévio procedimento licitatório, em observância ao princípio da impessoalidade, dispensado quando se tratar de doação para fins e uso de interesse social. Neste caso, recomenda-se que se faça prévio chamamento público ou que justifique-se a sua não-realização”.

A Conjur alertou que, dada a sua relação com a saúde pública, na escolha de entidade ou instituição privada, deve ser dada preferência às entidades filantrópicas e às sem fins lucrativos, como determina o art. 199 da Constituição federal. Acrescentou que a Constituição veda todo tipo de comercialização do sangue e seus derivados.

Diante do parecer jurídico, o blog questionou se a Hemobrás vai realizar a licitação. “Sim, será realizado o chamamento público para ver se existem outros possíveis interessados de acordo com os requisitos estabelecidos pela Conjur do Ministério da Saúde”, respondeu a estatal. O prazo para a conclusão do processo será de 90 dias a partir do lançamento do edital de chamamento público. O plasma está acondicionado nas câmeras frias da Hemobrás, até que ocorra sua destinação final.

O Ministério da Saúde não quis comentar o parecer da Conjur, alegando que o documento está sob sigilo.

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