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Apesar da falação boba de hoje em dia, nem sempre o natural é bom
| Foto: Artie Navarre/Pixabay

A natureza é objeto de muita falação boba hoje em dia. O adjetivo "natural" acompanha todo tipo de equívoco. Como exemplo clichê, o uso do adjetivo em questão visa, comumente, dizer que algo é bom ou orgânico, confiável ou saudável.

Aqui já reside a ignorância crassa – câncer é tão natural quanto uma bela praia deserta. Pestes são tão naturais quanto alfaces criadas sem agrotóxicos, por exemplo.

Existem duas concepções de natureza egressas da filosofia e religião gregas que marcam o Ocidente. A obra "Le Voile d'Isis" (O véu de Isis), do filósofo francês Pierre Hadot (1922-2010), narra essa história para quem quiser saber um pouco o que se quer dizer quando se diz "natureza" para além do senso comum banal. O combate à banalidade é da natureza da filosofia.

A primeira concepção é chamada por Hadot de prometeica, sendo fiel à interpretação consensual entre especialistas no assunto. Claro que essa nomenclatura está vinculada à peça "Prometeu Acorrentado" ,de Ésquilo (525 a.C."" 456 a.C), na qual Prometeu rouba o segredo do fogo dos deuses, dá a chama aos homens e é punido por Zeus por isso.

O fogo aqui é a grande metáfora da técnica, e os homens não seriam vistos pelos deuses como capazes de manipular tanto poder técnico – nem as mulheres, já deixo o aviso às afoitas de gênero.
Nessa linhagem, o termo mais preciso é uma relação mecânica com a natureza, em que "mechané", termo grego para contenda ou luta, descreve nossa atitude em relação à natureza, a fim de obrigá-la a nos revelar seus segredos. E aqui temos um detalhe fundamental na concepção de natureza dos gregos.

O pré-socrático Heráclito de Éfeso (540 a.C""470 a.C) nos deixou um fragmento em que ele afirma que a natureza ama se esconder de nós. O ambiente permanece sob um véu que nunca podemos atravessar plenamente. A imagem normalmente associada na arte figurativa à de uma mulher que se esconde ou se desvela, relevando ou não os segredos do seu corpo feminino, é enormemente poética.

Para os prometeicos, como os cientistas modernos – e, à época, já havia experimentos próximos do que hoje chamamos de ciência moderna –, trata-se de torturar a natureza, via experimentos calculados, para fazer com que ela nos releve seus segredos para que vivamos melhor.

É evidente a linhagem direta entre o segredo do fogo de Prometeu e vacinas, aviões, computadores, construção de casas, transplantes, engenharia genética e outras invenções científicas similares. Francis Bacon (1561-1626), grande organizador do método indutivo na ciência moderna, usava essa metáfora da tortura da natureza para a ciência nascente.

Na verdade, a pergunta que separa a linhagem prometeica da órfica – nos termos de Hadot– é se temos ou não o direito de torturar a natureza para que ela revele seus segredos, como no ato de rasgar as roupas de uma mulher e, assim, destruir seu pudor e acessar os recantos do seu corpo. Seria esse ato uma desmedida?

A figura do mítico poeta Orfeu representa aqui o ato de contemplar a natureza, deixando-nos encantar por ela ou passando a encantá-la com nossa poesia, arte e música, dedicando ao ambiente o nosso amor e o nosso respeito, em oposição à atitude prometeica de violá-la. Há uma oposição clara entre usar a natureza como recurso ou contemplá-la como divindade.

Nas antiguidades grega e romana, muitos filósofos de peso que você conhece – Platão, estoicos, epicuristas, entre outros– foram contra esse viés mecânico de invasão dos segredos da natureza.
Mesmo entre os românticos modernos, como Goethe e Schelling, ambos vivendo entre os séculos 18 e 19, ecos da atitude órfica são encontrados em suas obras, como na medicina antroposófica.

A crítica aos excessos da ciência na lida com o planeta ou com a natureza carrega claros traços da ideia de contemplação como forma de respeito aos limites do pudor da natureza. Diante do sucesso da ciência prometeica ao longo dos séculos, hoje em dia, a atitude contemplativa órfica nos parece quase a afetação de uma doce ignorância.

Pergunte-se, quando você tiver um ataque cardíaco, você prefere um médico prometeico ou um órfico no pronto-atendimento do hospital.

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