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A primeira baixa no processo de radicalização que vivemos no Brasil é a elegância. As pessoas se tornam mesquinhas e mal-educadas quando convidadas ao debate, ansiosas pelo sangue dos outros entre os dentes. Nada, nem ninguém, é poupado, nem velhas amizades, nem o rito milenar do respeito ao "santuário", local em que se conversa educadamente sobre questões em disputa sem tentar vencer o outro. Aprofundemos um pouco esse mau presságio.

Polarização, faccionalismo, radicalização. Suspeito que o termo polarização já não apreenda a totalidade da experiência política no Brasil atual. Expressões como faccionalismo, no sentido dado pelos federalistas americanos (voltaremos a eles depois), capturam nossa experiência no país hoje de forma mais ampla e profunda. Por último, radicalização, à semelhança do uso no caso islâmico, parece-me descrever melhor o dano cognitivo, afetivo e político-social que a polarização causa no Brasil.

A polarização política poderá nos levar à exaustão. Infelizmente, mesmo os agentes públicos do pensamento se radicalizam à medida que o tempo passa, num movimento psicológico de infantilização intelectual e afetiva.

Trago para o diálogo os federalistas americanos Alexander Hamilton, James Madison (o mais essencial deles) e John Jay, autores de um volume não muito conhecido no Brasil cujo título é "O Federalista", na tradução portuguesa da editora Calouste Gulbenkian, de Lisboa (em breve, a Folha nos presenteará com uma tradução brasileira) – em inglês o livro é conhecido como "The Federalist Papers", e foi escrito nos últimos anos do século 18. Com esse diálogo, pretendo oferecer recursos bibliográficos para aqueles que tiverem a boa vontade de combater a polarização. Esta está para a junk food assim como a tentativa de superá-la está para uma dieta ampla. A polarização é uma forma de regressão política.

Um dos riscos sempre temidos nos regimes populares (leia-se, as democracias) é o faccionalismo. Esse fenômeno, um dos focos de atenção dos federalistas, é quando grupos de diferentes tamanhos e densidade elegem como foco privilegiado sua própria agenda em detrimento da agenda do país como um todo. Sua vocação é distinta daquela conhecida por nós como lobby, porque seu ethos é o da guerra, da intransigência e da violência. O faccionalismo destrói a capacidade de convívio, e faz com que conflitos outrora tratados no âmbito da institucionalidade transbordem para a violência autojustificada. A "competição" entre manifestações é um primeiro passo para o faccionalismo pleno.

A trajetória provável do faccionalismo é a desarticulação da democracia, e sua possível lenta destruição. O Brasil de hoje tem ao mesmo tempo um presidente faccionalista com um guru faccionalista (Olavo de Carvalho), e uma oposição faccionalista com um guru faccionalista (o Lula), que vê a si mesma como uma legião de boas almas cuja missão é salvar o país de si mesmo. O PT sempre teve uma vocação faccionalista. O bolsonarismo é seu reflexo no espelho. Julgar-se do bem na política sempre carrega um traço de faccionalismo.

Quanto à radicalização, vejamos outro clássico da política: "Considerações sobre a Revolução na França", livro do britânico Edmund Burke publicado pela É Realizações e datado dos últimos anos do século 18. Nesta peça literária sobre filosofia política, Burke imagina a invasão dos aposentos da rainha Maria Antonieta pelos jacobinos enraivecidos: "logo descobrirão que a rainha é só uma mulher, e que uma mulher é só um animal."

Essa passagem é conhecida como a matriz do conceito de imaginação moral, que não trataremos aqui. O próprio Burke sabia que essa raiva era fundamentada: a aristocracia francesa rompera seu acordo de cuidar da nação francesa, levando seu povo ao desespero.

Não me refiro aqui aos "miseráveis" a perder a elegância e perceber que uma mulher ou um homem são meros animais, passando a tratá-los como tais. Refiro-me à elite intelectual brasileira, que está a ponto de perder a elegância no debate entre nós mesmos. Se não há nada a fazer a não ser o ódio prático, o que nos resta? A guerra? Querer "ganhar" a briga intelectual não é indício de bolsonarismo e petismo mentais?

Se a responsabilidade é de nós todos, a maior parte cabe, sem dúvida, ao governo. Romper o faccionalismo é a tarefa diante dele e da oposição. A vaidade é uma inimiga mortal de quem quer cuidar de uma nação. A humildade é a única virtude que cabe aos líderes. E sua filha dileta, a prudência.

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