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Seriado “Years and Years”.
Seriado “Years and Years”.| Foto: BBC/Divulgação

Leitores me perguntam como podemos ver a redução do amadurecimento em nossos dias. Fácil. Hoje vou dar dois exemplos da indústria do audiovisual nos quais esse processo se faz claro – e não estou falando de Bacurau, que, aparentemente, é um caso gritante desse empobrecimento mental contemporâneo.

O primeiro, mais antigo, de 2017, o filme O Círculo, com Emma Watson e Tom Hanks. Revela uma personagem "milênia" que acha, ao final, que nada há de errado em se tornar transparente para o mundo inteiro por meio da ferramenta do "círculo", contanto que o CEO da empresa não seja corrupto. A confiança na bondade natural das pessoas (ou melhor, das novas gerações) sustenta a ideia de que a crítica da destruição da privacidade seria coisa de dinossauros, e que jovens, bem intencionados, melosos em suas mensagens, configuram um contrato social sustentável em termos morais e políticos. Só um incauto acreditaria nisso. É a negação frontal da realidade, não porque o problema da natureza humana seja apenas dos jovens.

Sei: os inteligentinhos berrarão contra o conceito de natureza humana, mas deixemos a caravana passar.

A ideia de que haja uma redenção trans, a ideia de que "somos o que quisermos ser", é marketing puro

Outro exemplo (de 2019), melhor ainda, pelo salto entre um diagnóstico sofisticado do futuro próximo e um final idiota, é a minissérie da HBO britânica, Years and Years (Anos e anos). A série faz uma excelente descrição de um mundo caótico nos próximos 20 ou 30 anos, pós-brexit. Uma populista assume o governo britânico, Trump já foi reeleito, e, em seguida, faz seu sucessor (Pence), a comunidade europeia está em frangalhos, crises financeiras assolam o mundo globalizado, fake news em toda parte, mas... jovens "trans-humanas" em interação com o sistema de dados da nuvem e uma ativista, que ao morrer faz seu upload para uma plataforma "líquida" de dados, além do amor familiar, salvam o mundo de pessoas más, como a populista, interpretada por Emma Thompson, uma Trump de saias. Imagino Marx revirando no túmulo, pedindo a Kardec que lhe dê alguma forma de vingança contra os idiotas que se dizem seus herdeiros.

Na família protagonista, os Lyons, temos a família pós-moderna perfeita: gays sinceros em seus afetos, menino superfofo que quer ser menina, homem hetero branco escroto, como de costume, que destrói a família para comer colegas de trabalho por aí, uma bisavó de 120 anos que conclama os jovens da família à revolução, uma das netas, cadeirante, que tem um filho de cada homem, e, no topo, uma menina que quer ser "trans-humana". Aqui, acho que reside um dos tópicos mais essenciais da questão.

Ambos os exemplos transitam pelo discurso libertário do vale do Silício: papo furado para milênio bobo acreditar. Recomendaria aos infantis que pensam assim a leitura de The Age of Surveillance Capitalism, de Shoshana Zuboff. Nada há de libertário nesse mundo ciber-anarquista.

As duas peças audiovisuais investem na ideia de que jovens libertos da ganância (não existe isso quase no mundo) podem transcender em direção a um suporte material mais eterno e pleno. No caso da personagem Bethany de Years and Years, a "trans-humanista" confessa que o simples ato de respirar lhe dá nojo porque, inclusive, polui o meio ambiente. Seu gozo é voar como um espírito nas "nuvens" de dados sobre o mundo. E ela quase chega lá. Pairar sobre a miséria da matéria humana presa aos seus carbonos pré-históricos.

Enfim, a ideia de que tudo se resolve com o amor, numa espécie de cristianismo requentado pelo vale do Silício, é para iniciantes ou bobos. Nada nunca se resolve com coisa nenhuma. É uma batalha contínua, sem rumo. Uma das características do mundo de mercado (ou do capital, como queira) é fazer você, principalmente se ganhar dinheiro, sentir-se parte de um destino grandioso de transformação do mundo. E de lá, esse capitalismo aprendeu a mentir muito melhor do que nos séculos 19 ou 20.

A ideia de que haja uma redenção trans, a ideia de que "somos o que quisermos ser", é marketing puro. A fé na redenção trans como ultrapassagem da condição material humana é um atestado de inanição histórica.

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